Colapso de ecossistemas como a Amazónia estará mais próximo do que se pensava

Análise de múltiplas fontes de pressão em modelos de ecossistemas mostra que colapsos podem estar iminentes. “É necessário monitorizar todas as fontes de stress”, diz cientista.

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A perda da Amazónia pode desencadear fenómenos em cadeia com impacto no clima mundial NELSON GARRIDO
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Um dos riscos da contínua desflorestação da Amazónia é o regime climático mudar, fazendo com que haja menos chuva e partes significativas da floresta se transformem numa savana. Há várias estimativas para o risco dessa transição acontecer. Mas um novo estudo usou modelos para comparar o resultado de diferentes tipos de fontes de stress e eventos extremos que pressionam os ecossistemas e mostrou que florestas como a Amazónia e outros tipos de ecossistemas, como lagos e ilhas, podem entrar em colapso mais rápido do que o esperado. O estudo foi publicado há poucos dias num artigo na revista Nature Sustainability.

“Quando existem múltiplas fontes de stress e a inclusão de ruído [na forma de eventos extremos], isso aproxima substancialmente a ocorrência do colapso dos ecossistemas ao presente”, adianta ao PÚBLICO o investigador Simon Willcock, da Universidade de Bangor, no Reino Unido, e um dos autores do novo estudo. “As nossas descobertas mostram que é necessário monitorizar todas as possíveis fontes de stress a que sujeitamos um dado ecossistema.”

Os pontos de ruptura (ou pontos de não-retorno) e o colapso de sistemas da Terra são uma questão que tem sido muito investigada no contexto das alterações climáticas e da degradação dos ecossistemas. “O ponto de ruptura é um termo científico que damos a grandes mudanças no estado de algo (como a mudança das águas de um lago de limpas para cheias de algas), que resultam de uma pequena mudança na fonte de stress (um pouco de poluição a mais)”, é como a gota de água que faz transbordar o copo, explica o investigador. “São particularmente importantes porque tipicamente são muito difíceis de serem revertidos”, adianta.

Fenómenos em cadeia

Fenómenos como o derretimento do permafrost e do gelo da Gronelândia, do branqueamento e da mortandade dos corais e do desaparecimento das florestas tropicais como a Amazónia preocupam os cientistas não só pela perda de ecossistemas e da biodiversidade que isso acarreta, mas também porque podem provocar uma cadeia de eventos capazes de exacerbar a ameaça das alterações climáticas.

O caso da floresta Amazónia é paradigmático. Caso aquele sistema desapareça e seja substituído por uma savana, além de resultar na perda de inúmeras espécies e de uma riqueza única na Terra, haverá uma enorme quantidade de dióxido de carbono que vai parar à atmosfera, aumentando a concentração de gases com efeito de estufa e piorando o aquecimento climático. Por outro lado, regimes de chuva alimentados pela transpiração constante da floresta ficarão em risco, pressionando outros ecossistemas que são alimentados por aquelas chuvas, além de regimes agrícolas dos quais dependem várias regiões do Brasil.

Mas a grande dificuldade é perceber quando é que o sistema vai atingir o ponto em que qualquer fonte extra de pressão pode desencadear o colapso. “É muito difícil de se antecipar”, refere Simon Willcock.

No artigo publicado na Nature Sustainability é dado o exemplo do lago Erhai. Esta massa de água tem 40 quilómetros de comprimento, sete a oito quilómetros de largura e fica situada a uma altitude de 1974 metros na província de Yunnan, na China. Desde 1996 que se registaram fenómenos de explosão de microalgas naquele lago. E, entre 2001 e 2003, o lago passou de uma situação de água límpida para outra situação de água turva devido à explosão de algas, alterando o seu estado de uma forma mais permanente.

A rápida transição foi surpreendente. “Uma eutrofização abrupta do lago foi inicialmente interpretada como tendo sido causada pela transgressão de um limiar de enriquecimento de nutrientes devido aos escoamentos [de fertilizantes] agrícolas, mas a análise histórica mostrou que a mudança também foi influenciada pela gestão do nível de água, pelo clima sazonal e pela aquacultura”, lê-se no artigo. Ou seja, existiram várias pressões em conjunto que levaram ao colapso do sistema.

Para os autores, o lago Erhai é um bom exemplo de que, quando se monitoriza apenas uma única fonte de pressão de um ecossistema, é possível ser-se apanhado de surpresa com o seu colapso inesperado, potenciado pela combinação de várias fontes de pressão que não estavam a ser levadas em conta. A análise feita no novo estudo – que contou ainda com John Dearing, da Universidade de Southampton, Gregory Cooper, da Universidade de Sheffield e John Addy, do Rothamsted Research, três instituições do Reino Unido –, sustenta aquele argumento.

Ecocídio na ilha de Páscoa

A equipa trabalhou com modelos de quatro sistemas diferentes. Dois dos modelos foram baseados em ecossistemas reais: a lagoa Chilika, em Odisha, na Índia, onde várias comunidades humanas dependem da actividade piscatória no lago; e a ilha da Páscoa, onde no passado viveu uma comunidade humana que desapareceu, num exemplo que poderá ser interpretado como uma situação de ecocídio. Os outros dois modelos representam sistemas diferentes: um lago que vai recebendo quantidades de fósforo arriscando a eutrofização e outro modelo que simula a morte de uma floresta.

Os modelos “reflectem ecossistemas modernos, mostram várias interacções antropogénicas, indo de sistemas socioecológicos com feedbacks humanos e naturais fortemente acoplados, até sistemas ecológicos onde predominam interacções de uma só via, em que os ecossistemas são influenciados pelo impacto externo das pessoas”, descreve Simon Willcock.

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A ilha da Páscoa foi um dos ecossistemas alvo do novo estudo CARLOS BARRIA/Reuters

A partir deste sistema, os autores analisaram, genericamente, o impacto que um único tipo de pressão ascendente tinha num dado ecossistema ao longo do tempo e quando é que esse ecossistema entrava em colapso devido a essa pressão única, e compararam esse resultado com o cenário em que existe mais uma ou mais duas pressões, e onde há também o “ruído” – fenómenos extremos como secas prolongadas, incêndios e excesso de chuva que ocorrem de vez em quando.

Por exemplo, no caso do modelo que simula a morte da floresta, a primeira fonte de stress é a mudança na temperatura do ambiente e a segunda fonte é o nível de distúrbio da floresta. Já no caso do modelo da ilha de Páscoa, a primeira fonte de stress é o desmatamento da floresta da ilha, a segunda é a capacidade de carga agrícola causada pela comunidade humana e a terceira é a mortalidade das árvores por doença.

Pondo estas diferentes pressões mais o ruído em acção, os investigadores mostraram que os ecossistemas podem entrar em colapso entre 38% e 81% mais cedo do que o esperado. Ou seja, se um colapso estava previsto para ocorrer na última década deste século, poderá, na realidade, ocorrer já na década de 2030.

“Observámos também ‘colapsos inesperados’ que ocorrem quando é posto demasiado foco em monitorizar uma única fonte de stress”, adianta o investigador. Por isso é que é tão importante monitorizar o máximo possível de pressões que estão em funcionamento na dinâmica de um dado ecossistema.

Impacto positivo

Perante estes resultados, o que está em jogo? No artigo, os autores argumentam que, por exemplo, o colapso da Amazónia pode ocorrer décadas antes do que o esperado. Ao PÚBLICO, Simon Willcock sublinha que o estudo e os seus resultados não podem ser analisados isoladamente. No caso da Amazónia, o investigador analisa estes resultados no contexto de dois artigos recentes: uma investigação mostra que há indícios que a Amazónia já está a perder resiliência e outro estima que, assim que o colapso se iniciar, ocorrerá em meio século. Por isso, é possível imaginar que, “se o colapso começar em 2030, então a ‘savanização’ da Amazónia pode ficar completa em 2080”, calcula.

Caso esse e outros colapsos aconteçam, os autores são categóricos. “Não há forma de restaurar ecossistemas dentro de qualquer período de tempo que seja razoável [para a vida humana]”, escrevem John Dearing, Gregory Cooper e Simon Willcock, num artigo recente publicado no The Conversation sobre a descoberta. Ao contrário dos bancos no mundo financeiro, “não há resgates ecológicos”, dizem. “Seremos obrigados a encaixar o golpe.”

Mas a forma como este futuro vai acontecer ainda não está escrita na pedra. “O momento em que os pontos de ruptura são atravessados dependerão muito de como os humanos em todo o planeta mudam os comportamentos e reduzem as emissões [de gases com efeito de estufa]”, recorda Simon Willcock ao PÚBLICO.

Há, também, a possibilidade de se ter um impacto positivo nos ecossistemas e evitar os colapsos, argumenta o investigador. Mas para isso é necessário mais conhecimento. “Nem sempre os pontos de não-retorno são negativos”, afirma o investigador. “É necessário fazer-se investigação para examinar como podemos desencadear pontos de não retorno positivos de modo a carregar nos botões correctos para causar recuperações rápidas e inesperadas dos ecossistemas.”