E-Redes deixa zona de barracas do Bairro das Pedreiras cinco noites às escuras

Desta vez a E-Redes não se limitou a remover as puxadas que encontrou na zona abarracada daquele bairro de Beja. Os postes de iluminação pública deixaram de funcionar.

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Sem título de propriedade ou contrato, os residentes não conseguem assinar um contrato de fornecimento de electricidade Pedro Martinho
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A denúncia foi enviada pelo SOS Racismo, a associação Habita e a página Iniciativa Cigana a várias entidades públicas: na última quinta-feira, a zona de barracas e tendas do Bairro das Pedreiras ficou às escuras.

O breu já se abateu outras vezes sobre as barracas, que foram sendo levantadas junto ao bairro social inaugurado em 2006 com 50 fogos de alvenaria. Só que, desta vez, a antiga EDP Distribuição, actual E-Redes, não se limitou a remover as puxadas. Desligou os postes de iluminação pública.

“Como o presidente [da câmara] não põe cá luz, roubei a luz”, justificava, segunda-feira à tarde, um morador, que fez um curso de electricidade. “Vieram cá e cortaram os fios. Tenho um gaiato com quatro meses. Tinha frigorífico, tudo, e agora não tenho condições. Ontem à noite, uma cobra picou-me”.

É um problema clássico dos bairros autoconstruídos. Sem título de propriedade nem contrato de arrendamento, os residentes não conseguem assinar um contrato de fornecimento de electricidade.

Procurando resolver esse problema, o Governo aprovou um regime extraordinário em 2018. Conforme o decreto-lei, “compete ao município requerer a ligação provisória do núcleo de habitações precárias à rede de distribuição, após audição dos moradores”.

Todos os dias, aquele morador pegava nas ferramentas certas e tentava retomar a ligação. Experimentava vários postes e nada. A falta de iluminação pública tornava a existência ainda mais difícil naquele lugar. “Não temos casas de banho, não temos nada”, dizia. Se alguém precisa de fazer as suas necessidades, aventura-se no escuro, correndo o risco de se cruzar com ratos e cobras. “Isto é um cemitério de vivos.”

Questionado pelo PÚBLICO esta terça-feira de manhã, o gabinete de imprensa do operador começou por sublinhar que “a apropriação indevida de energia eléctrica representa um perigo para pessoas e bens e é um acto ilícito”. “A E-Redes intervém diariamente com o objectivo de eliminar as situações irregulares que ponham em causa a segurança de pessoas e bens ou que não tenham as condições necessárias. Em Beja, no bairro da Pedreira, a E-Redes foi alertada por uma força policial para existência de várias ligações ilegais, tendo actuado em conformidade.”

Não negou que o corte incluía a iluminação pública. “Para garantir a segurança de todos, a iluminação pública foi desligada pontualmente e de forma temporária, por forma a evitar novas puxadas ilegais”, argumentou. Pouco depois, já perto das 18h, uma equipa chegou ao bairro e começou a religar os postes.

“Sabemos que o método de fazer puxadas é ilegal, que corresponde a consumir electricidade sem a pagar, mas sabemos também que a nenhuma destas pessoas é possível fazer um contrato de electricidade”, lê-se na denúncia assinada pelo SOS Racismo, a Habita e a Iniciativa Cigana. “Não é crime uma empresa que existe para assegurar um bem essencial, cortar a luz a estas famílias, aumentando, ainda mais, o risco em que sobrevivem?”, questionam. “Não são crime a discriminação e a condenação continuada destas pessoas à humilhação, o ataque à sua saúde e à sua dignidade, perpetrada pelo Estado?"

"Exclusão social e Anticiganismo"

Os três colectivos dirigiram esta mensagem ao primeiro-ministro, à ministra da Habitação, à Secretaria de Estado para a Integração e as Migrações, à alta comissária para as Migrações, aos membros do Núcleo de Apoio às Comunidades Ciganas, à coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas. E ao presidente da Câmara Municipal de Beja, ao presidente do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana, ao presidente da EDP, à Procuradoria da República da Comarca de Beja e à provedora de Justiça.

“Não é por livre escolha que estas pessoas vivem nestas condições, é por exclusão social e Anticiganismo”, advogam. O bairro é habitado “exclusivamente por pessoas Roma/ciganas, a quem é difícil aceder a trabalho regular”. “Esta comunidade é vítima, desde há muito, da discriminação racista dos poderes públicos.”

“Temos uma lista interminável de correspondência trocada com a Câmara de Beja”, afirmou Maria João Costa, da Habita. “Há todo um processo que é preciso fazer para que esses bairros possam aceder a electricidade legalmente, mas a câmara recusa-se a olhar para aquele problema.” E optou por não incluir o Bairro das Pedreiras na Estratégia Local de Habitação. Para Maria João Costa, há “vontade de expulsar as pessoas”.

De acordo com o chefe de gabinete do presidente da câmara, Gavino Paixão, a informação sobre o corte de electricidade chegou ao município esta segunda-feira através da queixa enviada por e-mail pelos três colectivos Entretanto, a provedoria de Justiça questionou o executivo e a vereadora responsável pelo pelouro da Habitação estava esta tarde a preparar uma resposta.

Perguntando-se-lhe a razão pela qual a autarquia não tomou providências para que aquelas pessoas possam ter luz de forma legal, responde que o gabinete jurídico está a analisar o decreto que estabelece o regime extraordinário para a ligação à rede pública. “Se for o caso, podermos intervir.”

Quanto à Estratégia Local de Habitação, diz que a autarquia não identificou bairro algum. Tem, sim, uma lista de famílias que carecem de apoio. “As pessoas inscrevem-se.” O plano passa por reabilitar 162 fracções de habitação social municipal, construir 84 fogos, comprar 60 habitações no centro histórico e nas freguesias rurais. E por fazer obras em 22 habitações precárias de famílias vulneráveis. Não sabe dizer se entre os inscritos estão famílias que moram em barracas e tendas levantadas junto ao Bairro da Pedreira.

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