Praga agrícola: alterações climáticas podem travar evolução da mosca-da-maçã

Praga agrícola está em processo de se tornar nova espécie, mas aumento da temperatura pode pará-lo. Estudo mostra a dificuldade de se prever o efeito das alterações climáticas nos insectos.

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A mosca-da-maçã Hannes Schuller
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Os insectos têm sido notícia pelo seu declínio acentuado nas últimas décadas. As ameaças vão desde os pesticidas até às alterações climáticas, um problema mundial cujas implicações futuras estão cheias de interrogações para aquele grupo de animais. Um estudo agora publicado na revista Ecology Letters foi testar o impacto do aumento de temperatura na mosca-da-maçã (Rhagoletis pomonella), uma praga agrícola que está a evoluir para se tornar numa nova espécie. O trabalho descobriu que com o aumento de temperatura existe uma possibilidade da especiação ser revertida.

“Esta investigação demonstra o quão específicas as respostas [às alterações climáticas] vão ser para certas espécies e populações” de insectos, explicou Thomas Powell, líder do estudo, ao PÚBLICO, acrescentando que esta é uma prova da dificuldade de se gerar modelos que possam prever o que vai acontecer no futuro às espécies de insectos com o aquecimento global.

A mosca-da-maçã é uma espécie importante não só pelos estragos que faz na agricultura, mas principalmente por ser um testemunho importante das forças presentes no fenómeno da formação de novas espécies. O insecto “tem sido estudado extensivamente desde a década de 1960 como modelo para compreender como é que as adaptações ecológicas levam à formação de novas espécies”, adianta o investigador, que é biólogo evolucionista e professor no Departamento de Ciências Biológicas da Universidade de Binghamton, que pertence à Universidade Estadual de Nova Iorque, nos Estados Unidos.

Este insecto só começou a atacar maçãs de há 170 anos para cá, quando as macieiras foram introduzidas no Leste da América do Norte. Originalmente, as larvas da Rhagoletis pomonella alimentavam-se das bagas da espécie vegetal Crataegus mollis, um parente do pilriteiro. Mas as maçãs abriram um novo mercado para a mosca, fazendo com que se desenvolvesse uma população especialista na predação das maçãs.

Da terra à terra

A mosca-da-maçã passa a maior parte do ano dormente no solo em estado de pupa naquilo a que se chama a “diapausa”. Após o Inverno, com o aumento das temperaturas, a diapausa termina, a mosca acaba de se desenvolver e eclode em estado adulto. Quando sai da terra, alimenta-se durante duas semanas para se dar a maturação sexual e poder reproduzir-se.

Depois de se reproduzir, a fêmea põe os ovos no fruto maduro. Quando nascem, as larvas alimentam-se do fruto e vão crescendo. Toda esta actividade no fruto acaba por acelerar a sua maturação e ele cai da árvore, o que permite as larvas rastejarem para fora e enterrarem-se na terra, onde se transformam em pupa, entram em diapausa, e o ciclo anual recomeça.

A maturação das maçãs dá-se três a quatro semanas antes da maturação das bagas da Crataegus mollis. Essa diferença teve um grande peso na distanciação da nova população da mosca-da-maçã. Ao especializar-se nas maçãs, o momento de reprodução desta população raramente coincide com a população que preda as bagas da Crataegus mollis.

“As populações estão adaptadas de uma forma divergente de modo que estão maioritariamente isoladas a nível reprodutivo entre elas”, explica Thomas Powell. “Elas ainda se reproduzem entre si, mas só se hibridizam na natureza a um rácio de 5%. São consideradas um exemplo clássico da especiação em acção, onde podemos estudar o processo de especiação à medida que ocorre.”

Estas características são importantes para o estudo que a equipa fez. A adaptação da mosca às maçãs envolveu uma resposta evolutiva rápida que permitiu recuar o desenvolvimento e maturação dos insectos para estarem em sincronia com a maturação mais precoce da maçã (em relação à maturação das bagas). Por isso, “este também é um modelo interessante para compreender o potencial de respostas evolutivas rápidas às alterações climáticas”, acrescenta o cientista.

Além disso, como existem três espécies de vespas que predam a mosca-da-maçã, o trabalho também possibilitou avaliar que impacto é que o aumento de temperatura tinha nestes parasitóides. Uma das espécies de vespas infecta os ovos da mosca e as duas outras espécies infectam as larvas durante a fase de alimentação no fruto. Só quando as larvas das moscas alcançam o estado de pupas é que as larvas das três espécies de vespas saem dos ovos e alimentam-se das pupas, matando-as.

Embora as três espécies de parasitóides predem as duas populações divergentes de Rhagoletis pomonella, as próprias vespas estão a sofrer um processo de evolução. “Esta é o primeiro caso bem documentado de especiação ecológica ‘sequencial’ ou ‘em cascada’”, explica Thomas Powell. “Onde o início da especiação de um organismo por via uma adaptação divergente provoca o início de outros eventos de especiação em organismos que interagem com o primeiro.

Assim, a introdução de maçãs na América do Norte abriu a oportunidade ecológica que iniciou o processo de especiação da [mosca] Rhagoletis pomonella, e isso em sequência permitiu que o processo de especiação se iniciasse também em toda a comunidade de vespas parasitóides. A diversificação a um nível ecológico pode gerar a diversificação em outros níveis ecológicos.”

Consequências severas?

A experiência durou 1,5 anos. A equipa começou por recolher no campo larvas de populações de moscas que se alimentavam de maçãs e de bagas. As duas populações, recolhidas na localidade de Urbana, em Ilinóis, nos Estados Unidos, estavam afastadas 1,3 quilómetros, uma distância demasiado grande para as moscas poderem voar.

No laboratório, os investigadores dividiram as moscas das duas populações no grupo de controlo, sujeito à temperatura média dos últimos dez anos daquela região do Ilinóis, e o grupo experimental, que foi submetido a uma temperatura média três graus superior à do controlo. Esta temperatura a mais é a estimada para aquela localidade dentro de 50 a 100 anos, de acordo com várias previsões científicas dos efeitos das alterações climáticas.

Ao todo, a experiência envolveu 1885 e 1719 pupas das maçãs, respectivamente no grupo de controlo e na situação com o aumento de temperatura, e 1453 e 1422 pupas das bagas, também no grupo de controlo e no de aumento de temperatura. O número de vespas parasitóides que a população de moscas continha foi bastante mais reduzido: 13 no caso das moscas associadas às maçãs e 134 nas associadas às bagas.

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O biólogo evolucionário Thomas Powell líder do estudo JONATHAN W. COHEN/Universidade de Binghamton/Universidade Estadual de Nova Iorque

Os resultados mostraram que o calor a mais tinha um efeito mais radical nas moscas associadas às maçãs. Comparando o grupo controlo com o grupo experimental, a percentagem de moscas que terminava a diapausa antes do início do Inverno – e não após a temporada de frio, como deveria ser – passou de 4,6% no grupo controlo para 24% no grupo experimental. Ou seja, houve um aumento grande do número de moscas que se desenvolveram muito antes de haver maçãs para colocarem os ovos.

Já no caso da população das moscas que atacam as bagas, como nas vespas que predam as duas populações de moscas, não houve alterações deste tipo. Isto será uma boa notícia? “Só porque o aumento de temperatura não mata de uma vez as moscas ou as vespas, isso não significa que as consequências não são severas”, responde o biólogo. “Vinte e cinco por cento das moscas que atacam as maçãs foi empurrada para um estado completamente desadequado a nível adaptativo onde se desenvolve e eclode numa altura do ano onde não tem possibilidades de sobreviver e se reproduzir.”

Por outro lado, apesar de as vespas não alterarem o desenvolvimento face ao aquecimento que o grupo experimental sofreu, há o risco de ficarem dessincronizadas com a altura em que as moscas se desenvolvem. Nesse caso, não se poderiam reproduzir. “As consequências ecológicas dessa adaptação desadequada seriam, em último caso, as mesmas que no caso de o aumento de temperatura matar [as vespas] directamente”, argumenta o biólogo.

Pequenos ramos da árvore da vida em risco

Outro aspecto que a equipa verificou na experiência e realçou no artigo é que tanto nas moscas que predam as maçãs como nas que predam as bagas, a eclosão após o Inverno ficou mais distribuída quando as moscas foram submetidas a temperaturas mais altas. Na natureza, uma mudança deste tipo poderia aumentar as possibilidades de hibridização entre as duas populações de moscas, o que na prática resultaria no risco de haver uma reversão no processo de especiação que está a ocorrer. Ou seja, as duas populações passariam a ficar de novo mais parecidas.

“Não são apenas os processos ecológicos que serão afectados com as alterações climáticas, mas também os processos evolutivos que estão a decorrer em tempo real”, analisa o biólogo. Apesar de esta hibridização poder ser vantajosa para as populações de moscas porque aumentaria a diversidade genética entre elas, o que em teoria iria torná-las mais resistentes às mudanças futuras, “o colapso de espécies acabadas de nascer representa uma diminuição da biodiversidade no plano geral, iríamos perder os pequenos ramos acabados de se formar da árvore da vida”.

A experiência mostra ainda a dificuldade de se fazer previsões sobre o impacto das alterações climáticas nos insectos, já que apenas submetendo este grupo de espécies ao aumento de temperatura – uma das muitas consequências que se esperam do aquecimento global –, os resultados foram múltiplas.

Por isso, para se conseguir vislumbrar o que o futuro poderá reservar, Thomas Powell defende a necessidade de se olhar para insectos com especial importância para os humanos: “Para se produzir modelos bem informados, poderá ser importante conduzir experiências em espécies e comunidades de insectos com ligações fortes às sociedades humanas, como aqueles envolvidos em serviços ecológicos chave, como o de polinização e de dispersão de sementes, ou os que têm interacções negativas como pragas agrícolas ou vectores de doenças.”