No Wash: vamos lavar a roupa o mínimo possível em nome do ambiente?
Não lavam a roupa com frequência e não têm qualquer pudor em dizê-lo. Gastam menos tempo, energia, água e dinheiro. E poluem menos o oceano. No Reino Unido, o movimento chama-se No Wash.
Não lavam a roupa com frequência e não têm qualquer pudor em dizê-lo. Para eliminar possíveis odores, apostam em arejar as peças ao fim dia ou pô-las ao sol. Assim se comportam muitas pessoas que prezam a higiene, mas que também têm apreço pelo planeta: mesmo as máquinas de lavar roupa mais eficientes gastam cerca de 50 litros de água por carga, sendo que outros modelos podem chegar aos 170 litros. No Reino Unido, esta prática doméstica tornou-se “um movimento” – chama-se No Wash, “não lavar”, em português – que, nas últimas semanas, despertou o interesse dos meios de comunicação britânicos.
“Temos de tirar o estigma desta conversa sobre a lavagem de roupa. Uma das razões que levam as pessoas a não falarem sobre estes assuntos é o medo de se sentirem julgadas. Quando comento que uso a mesma roupa vários dias seguidos, muitas pessoas já se mostram abertas a falar sobre isso também”, afirma ao PÚBLICO Rita Sousa, uma designer de 27 anos que vive em Coimbra.
Será que, se dissermos que só lavamos a roupa de vez em quando, as pessoas pensarão que temos mau cheiro? Ou que andamos sujos? Culturalmente, associamos a limpeza dos tecidos à higiene pessoal – quase como se as roupas fossem uma segunda pele humana. Talvez por isso a frequência com que lavamos as nossas roupas se insira num território íntimo, de difícil exposição pública.
Ao mesmo tempo, a forma como cada um de nós cuida dos tecidos integra um complexo conjunto de sistemas que nada tem de privado. Os nossos hábitos domésticos têm impactos colectivos de carácter ambiental e socioeconómico: das infra-estruturas de tratamento e abastecimento de água às indústrias têxtil, química e de electrodomésticos, são vários os sectores alimentados ou sobrecarregados pela lavagem de roupa.
“É claro que uma pessoa não vai usar a mesma T-shirt durante uma semana inteira, em pleno Verão, com temperaturas de 40 graus Celsius”, explica Rita Sousa, para quem o bom senso deve imperar na hora de seleccionar o que vai para o cesto e o que volta para o armário. “Mas também não faz qualquer sentido colocar para lavar uma toalha que acabou de secar um corpo limpo”, argumenta.
Em média, a designer usa a máquina uma vez por semana, lavando nessa ocasião têxteis de três pessoas. Para escolher quais as roupas que entram no tambor, Rita Sousa considera factores como o tecido, a função e a utilização de cada peça. Por exemplo: um par de leggings com composição sintética, usado numa corrida, vai obviamente para a máquina de lavar. Já calças de ganga podem ser usadas inúmeras vezes antes de seguirem para o cesto de roupa suja.
A preocupação ambiental também está presente na escolha dos produtos e das opções de lavagem. Rita Sousa não usa detergentes, lixívias ou amaciantes industriais, preferindo as “incríveis” nozes de saponária. Estes pequenos frutos de árvores do género Sapindus contêm saponina, uma substância com propriedades detergentes quando colocadas em água morna. Por isso, a designer faz ciclos a 30 graus Celsius e com “o mínimo de centrifugação”, para não agredir a roupa. Se houver uma nódoa, o detergente da louça resolve o problema.
Qual é a frequência ideal?
Aquilo que consideramos a frequência ideal da lavagem depende de um contexto histórico, tecnológico e sociocultural. E, talvez, do próprio esforço físico empregue. Registos com mais de 3000 anos referem que se batia a roupa contra as pedras do rio, por exemplo, ou se lavava com sabão de cinzas e sementes. Há não muitas décadas, as mulheres portuguesas passavam horas a esfregar roupas com um sabão em barra, lado a lado, em tanques públicos, onde a sujidade de um lugar inteiro de uma freguesia se diluía no mesmo reservatório de água.
“Portugal tem hoje hábitos de limpeza semelhantes aos dos países mais desenvolvidos. Ficou tudo mais simples: a electricidade e a água da rede pública estão mais acessíveis. O próprio preço dos electrodomésticos é um elemento incontornável que contribui para o uso mais frequente da máquina de lavar roupa”, avalia Susana Fonseca, vice-presidente da associação ambientalista Zero, numa conversa telefónica com o PÚBLICO.
A dirigente da Zero afirma que, apesar de “transpirar imenso”, usa várias vezes as roupas antes de encaminhá-las para o cesto. “Tento lavar o mínimo possível. Uma coisa são as roupas que estão muito próximas do corpo, outra são calças, camisas e casacos. Mesmo os sutiãs, eu volto a usar, não os lavo todos os dias. Isto é um pouco como a questão dos banhos: muitas pessoas têm vergonha de dizer que não tomam todos os dias – eu digo-o: não tomo todos os dias, sobretudo no Inverno, embora lave partes do corpo. Há um paralelismo entre os banhos e a lavagem de roupa, existe um livro da socióloga Elizabeth Shove que explica bem isso”, afirma Susana Fonseca.
No livro Comfort, Cleanliness And Convenience (2003, Bloomsbury Publishing), Elizabeth Shove oferece um estudo metodológico da vida quotidiana, explorando as histórias e as práticas sociais que gravitam à volta dos cestos de roupa suja, casas de banho e diferentes electrodomésticos que tornaram as rotinas familiares mais simples. Ao analisar aspectos inusitados como o número de botões e os programas das máquinas de lavar, a académica britânica reconstrói historicamente a emergência daquilo a que chama “a organização social da normalidade”.
“A lavandaria é hoje entendida como um processo de ‘cuidado da roupa’, um exercício de descontaminação de peças que estiveram em contacto com o corpo e de restauração de atributos valorizados de estilo, toque e imagem. Definido desta forma, o corpo é uma fonte segura e constante de poluição, e daí a ideia de que qualquer coisa em contacto com a pele deve ser lavada após cada uso”, escreve Elizabeth Shove num artigo académico.
Esta ideia do corpo como fonte de poluição é irónica se pensarmos que, a cada lavagem, muitos tecidos libertam grandes quantidades de microfibras que acabam nos rios e no oceano. Um estudo científico, publicado há três anos na revista Plos One, mostra que quase 13.000 toneladas de microfibras são lançadas todos os anos nos ecossistemas marinhos.
“Para garantirmos a sensação de que estamos limpos, e de que não cheiramos mal, temos todo um conjunto de poluentes que entra em contacto com organismos vivos. A questão das microfibras é um problema muito preocupante, mesmo em termos de toxicidade humana, porque estamos no topo da cadeia alimentar. Estudos já detectaram a presença de microplásticos nas fezes humanas e até no leite materno”, afirma Susana Fonseca.
A libertação de microfibras pode ser atenuada, garantem os cientistas, com ciclos de lavagem mais curtos a temperaturas baixas. Foi verificada uma redução de 30% na quantidade de microfibras libertadas quando se optou por um ciclo de lavagem de 30 minutos a 15 graus Celsius, em comparação a outro de 85 minutos a 40 graus.
O livro de Elizabeth Shove também mostra, sobretudo no sexto e sétimo capítulos, que a facilidade com que lavamos roupa hoje deve muito a progressos tecnológicos e obras de engenharia pública. Sem água corrente e máquinas de lavar dentro das nossas casas, provavelmente não lavaríamos tantas peças que foram usadas apenas durante uma dezena de horas, por pessoas sentadas ao computador num espaço climatizado.
A rapidez com que dispensamos uma peça usada também depende de questões de privilégio, nota a editora Mirna Queiroz, uma brasileira de 55 anos radicada em Lisboa.
“Não tenho essa ânsia constante de limpar tudo, não tenho definida uma frequência de lavagem de roupa. A gente sabe quando a própria roupa está suja. Quando somos nós que lavamos a nossa roupa, começamos a valorizar o tempo que gastamos com esse trabalho”, conta Mirna Queiroz, uma programadora cultural que já viveu em diferentes culturas onde a empregada doméstica desempenha um papel crucial no tratamento da roupa.
Quando a lavagem é responsabilidade de terceiros, as diferentes etapas do processo de limpeza – assim como a energia e os recursos envolvidos – podem tornar-se menos visíveis. Coloca-se a peça de forma quase automática num cesto e, passado algum tempo, a roupa reaparece limpa no guarda-fatos. A água, a electricidade, as substâncias químicas e a dedicação humana envolvidas nessa operação só perdem opacidade na hora de pagar por tais serviços ou produtos.
“O meu filho tinha a mania de chegar a casa e colocar logo a roupa para lavar. Experimentava uma roupa, não gostava e atirava para o cesto. Acabei por pedir à empregada que não cuidasse mais da roupa dele – é importante que compreendamos que o outro não está ali para nos servir, que tudo exige um esforço”, refere Mirna Queiroz.
A editora organiza o guarda-fatos segundo três funções: roupas para ficar em casa, para situações mais formais e para “fazer recados”. Quando vai à padaria ou aos correios, veste quase sempre as mesmas peças. “A minha vizinha deve achar que só tenho aquela roupa...”, brinca.
Ao chegar a casa, troca de roupa e põe a arejar as peças que acabaram de ser utilizadas. Isto dificulta que peças mais caras e novas fiquem com nódoas ou se desgastem mais rapidamente. Quando há uma parte com uma mancha, lava localmente ou aplica um pulverizador.
Nem sempre Mirna resistiu a lavar uma peça de roupa, recordando que “houve um facto histórico importante” que impulsionou “uma mudança mais metódica na parte no tratamento das roupas”: a crise hídrica que enfrentou em São Paulo, no Brasil, em 2014. “É preciso um evento drástico para um aumento de consciência. Pena que, quando termina, como no caso da pandemia, achamos que a vida voltou ao normal. Não voltou. É só mais uma etapa do fim do mundo como o conhecemos”, afirma.
Em plena crise climática, num país que enfrenta condições de seca hidrológica e já até planeia a construção de unidades dessalinizadoras, Mirna Queiroz não compreende como se pode usar água como se não houvesse amanhã. “Nós temos de estar à altura dos nossos tempos, é uma adaptação mais do que necessária”, assegura a editora, numa conversa telefónica com o PÚBLICO.
Não lavar por razões estéticas
Há adeptos do movimento No Wash que evitam lavar a roupa por razões estéticas. Bryan Szabo, editor do livro The Rebel’s Wardrobe (2023) – o guarda-fatos dos rebeldes, em português –, fundou um concurso internacional que consiste em acompanhar o desbotamento de calças de ganga ao longo de um ano. A iniciativa chama-se Indigo Invitational e exige que os participantes tenham uma peça nova de ganga e enviem fotos todos os meses, que depois são exibidas nas redes sociais. Para que o processo de desgaste do tecido seja autêntico, o ideal é que se lave a peça o mínimo possível.
“É um processo muito elegante ver as calças a transformarem-se ao longo de um ano. Há quem nunca as lave. No meu caso, uso-as todos os dias, é o meu uniforme, mas lavo-as imediatamente quando a minha mulher diz que estão a cheirar mal. Não é negociável – ela sente o cheiro e eu ponho logo para lavar”, afirma Bryan Szabo ao PÚBLICO numa videochamada.
Bryan Szabo nota que, apesar de a motivação principal do concurso não ser ambiental, o Indigo Invitational acabar por ter um efeito de “abrandamento do consumo”. Primeiro, porque os participantes usam as mesmas calças quase todos os dias, o que “evita a compra de outras peças de roupa”. E, depois, argumenta, a iniciativa encoraja uma relação “mais lenta” com os objectos, valorizando-os ao longo de 12 meses, sem “o desejo constante de adquirir novas peças ou experiências”.
Esta procura pelo par de jeans verdadeiro, único porque envelhece segundo a utilização da pessoa que o veste, parece estar inscrita na cultura de autenticidade de que fala o filósofo francês Gilles Lipovetsky. Numa entrevista concedida ao PÚBLICO em Março, o autor do livro A Sagração da Autenticidade (Edições 70, 2022) explicava: “O princípio do be yourself é hoje um consumo escolhido, um consumo ecológico que me permite, como dizem os anglo-saxões, uma tomada de poder sobre as condições da minha existência.” O filósofo não acredita, contudo, que a solução para a crise climática passe por mudanças individuais como menos consumo ou menos lavagens de roupa.
“Defende-se o desenvolvimento sustentável, mas compramos duas vezes mais roupa do que há 20 anos e guardamo-la durante um período duas vezes menor. […] Nas sondagens, os consumidores ocidentais até podem declarar consumir menos ou de maneira diferente, mas, na realidade, a sede de consumir produtos e serviços está tudo menos a recuar. A menos que se verifique uma catástrofe planetária, o reinado da autenticidade frugal não é para amanhã”, escreve o ensaísta francês em A Sagração da Autenticidade.
Salomé Areias, coordenadora da associação de moda sustentável Fashion Revolution Portugal, concorda com o argumento de que “o comportamento individual está muito longe de ter o impacto necessário para fazer face à crise climática que estamos a viver”. Há necessidade de mudança “sistémica”, afirma a investigadora do programa de doutoramento do Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade (Cense), na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
“Tenho visto o mediatismo do movimento No Wash e penso que pode ter um lado perverso, por pôr a responsabilidade unicamente do lado do cidadão. É claro que temos de utilizar a água com bom senso, sem desperdícios, mas também sabemos que a grande fatia de consumo de água não é para uso doméstico. Por outro lado, vejo estes comportamentos sustentáveis emergirem ao mesmo tempo em que o consumo de ‘fast fashion’ cresce cada vez mais – o que é interessante e preocupante, ao mesmo tempo”, afirma Salomé Areias.
O facto de podermos comprar tanta roupa, a um preço muitas vezes tão baixo, também pode encorajar lavagens mais constantes. Como temos sempre alternativas, o facto de a peça que usamos ontem estar hoje no cesto não faz tanta diferença. E, caso fique danificada, também poderá ser facilmente substituída, em comparação com os padrões de consumo de há 50 anos. Também sobre isso reflecte Elizabeth Shove, mostrando-nos que as convenções de limpeza que pairam sobre a lavagem da roupa podem ser um assunto mais complexo, e menos privado, do que pensamos.
“Os tipos de roupas que as pessoas usam, a quantidade que possuem e os tecidos com os quais são feitas são de vital importância para moldar ideias sobre o que precisa de ser lavado e quando. Mas a proliferação global e o consumo em massa de roupas promovem padrões mais altos ou mais baixos? Os dados sobre o número de ciclos de lavagem por ano ou o peso da carga média dizem-nos algo — mas o que os volumes de lavandaria ou as taxas de consumo de energia e água revelam, se é que revelam alguma coisa, sobre a mudança de conceito e convenções de limpeza?”, questiona a socióloga britânica.