Lidia Morawska: “A poluição do ar afecta todos os órgãos do nosso corpo”
Cientista faz investigação sobre poluição do ar e seu impacto no ambiente e na saúde. E não tem dúvidas quanto à forma como se deve enfrentar o problema: “O grande papel está no lado dos governos.”
Assim que chega, Lidia Morawska tira da mala um pequeno instrumento. Parece quase um despertador e tem uma seta por cima de cores, que vão do vermelho ao verde. A cientista senta-se à nossa frente e coloca essa ferramenta em cima da mesa. “É um instrumento que mede a concentração de dióxido de carbono”, informa-nos. E o que nos mostra? “Posso já dizer que a concentração nesta sala não é boa porque ultrapassa as 1000 partes por milhão de dióxido de carbono.” Mesmo assim, ainda não é preocupante, acrescenta sobre a proporção de moléculas de dióxido de carbono em relação a todas as outras moléculas na atmosfera. Lidia Morawska leva este instrumento a todos os sítios onde vai. “É pequeno e cabe na minha bolsa”, assinala.
A cientista da Universidade de Tecnologia de Queensland (na Austrália) faz investigação na área da qualidade do ar interior e exterior há mais de 30 anos. Em Junho esteve em Paris para receber o prémio “Para Mulheres na Ciência”, da Fundação L’Oréal e da UNESCO.
No seu discurso, na cerimónia que se realizou na sede da UNESCO, dedicou o seu prémio aos colegas da sua área — a da qualidade do ar interior e exterior —, que tem vindo a ganhar cada vez mais reconhecimento. “Sou uma física, mas a minha área de investigação, que é a qualidade do ar, é interdisciplinar, e tem impacto no ambiente e na saúde humana” — assim se apresentou.
Actualmente, no seu trabalho, tenta compreender o que pode ser feito para proteger a saúde humana da poluição atmosférica. “É o meu compromisso moral contribuir para o avanço da ciência e aplicar os benefícios do que faço para o bem da sociedade. Agora, mais do que nunca, devemos fazer com que as nossas vozes sejam ouvidas”, disse.
Antes da cerimónia, tinha-se sentado — com o medidor de dióxido de carbono ao lado — para uma entrevista com o PÚBLICO.
Estamos sentadas numa sala num hotel em Paris. Quais devem ser as preocupações relacionadas com a qualidade do ar no interior deste edifício neste momento?
Estamos num hotel invulgar. Este hotel foi concebido com um cuidado particular relativamente à qualidade do ar no seu interior. Não estou a par de todas as questões sobre a concepção do hotel, mas já me apercebi de que é um edifício invulgar.
Primeiro, há plantas em todas as salas. Começamos a observar as plantas e quase nem nos apercebemos de que estamos no centro de Paris. Depois, há uma distribuição do ar até ao tecto, porque é alto e isso permite que o ar circule entre o tecto e as extremidades das salas. Desta forma, o ambiente não fica seco e há uma excelente ventilação.
Deve ser um exemplo para outros edifícios?
Pode ser, mas cada exemplo é um exemplo específico. A concepção dos edifícios e do seu interior tem de ser adequada a cada ambiente. Não tenho a certeza se a concepção deste edifício poderá ser a mais adequada para áreas mais quentes, áreas frias ou áreas climáticas com muita humidade. Portanto, tem de se ter em conta o que é certo em termos de qualidade do ar dentro dos edifícios para os humanos e o que será mais adequado para cada ambiente. Estes são os factores-chave.
Quando vai a certos locais, estuda-os antes a nível de qualidade do ar?
Claro, gosto de ter informação, mas também sou uma grande observadora. Quer dentro quer fora de casa, estou sempre a observar os aspectos ligados à distribuição das fontes de qualidade de ar. A minha investigação é sobre qualidade do ar dentro e fora dos edifícios. Os dois juntam-se porque não há propriamente uma barreira entre o ar no interior e no exterior, mesmo que exista uma barreira entre os edifícios e o exterior.
Saindo agora desta sala de hotel, qual é actualmente a qualidade do ar exterior em Paris?
Não tive muito tempo para investigar a qualidade do ar em Paris, mas fiquei bastante impressionada com o que aprendi sobre Paris há uns anos. Num evento, por volta de 2013, o presidente da Câmara de Paris disse que queria ver a cidade só com carros eléctricos para que fosse possível reduzir a poluição. Para mim, na altura, isto foi algo visionário. Não sei qual é a situação da qualidade do ar hoje em Paris, mas, mesmo que todos os carros sejam eléctricos amanhã em Paris, ainda haveria poluição vinda de outros locais próximos, porque este é um continente densamente povoado. Não conseguimos evitar a circulação do ar...
É um assunto complexo…
Exactamente, mas sabemos que temos de fazer a transição para as energias limpas nos transportes, na produção de energia e em geral. É algo imperativo!
Agora, no geral, não apenas em Paris, quais são os grandes riscos relacionados com a qualidade do ar?
A poluição do ar afecta todos os órgãos do nosso corpo. As pessoas tendem a pensar que apenas é afectado o nosso tracto respiratório. Claro que há danos que são deixados no tracto respiratório porque aí se situam os órgãos que estão imediatamente em contacto com o ar, tal como a pele, mas depois a poluição penetra noutras partes do corpo e pode chegar ao sangue. Não há órgão nem sistema no nosso corpo que não sinta os efeitos da poluição do ar.
Quais serão os sinais aos quais devemos estar atentos?
Há sinais imediatos para pessoas que têm asma e que podem ter ataques se estiverem numa área com ar poluído. O grande problema são os efeitos que não conseguimos ver imediatamente, como os efeitos no sistema reprodutor ou no sistema cardiovascular. Quando alguém tem um AVC, não se considera logo que possa ter acontecido devido a uma exposição prolongada a poluição do ar, porque é algo que se desenvolve gradualmente ao longo do tempo. Contudo, a epidemiologia diz-nos que a poluição do ar é um dos grandes contribuidores para o AVC. Isto é um problema porque, se sentimos logo os efeitos, vamos fazer algo de imediato, mas se for algo que leva o seu tempo a aparecer também levaremos mais tempo a actuar.
Qual é hoje a situação no mundo quanto à qualidade do ar? Quais as áreas mais preocupantes?
Há dois anos, a minha equipa fez um estudo que analisava a poluição episódica. Nele analisámos situações como os incêndios florestais, como os que estão a acontecer agora no Canadá. Houve uma mensagem muito clara sobre eles: a única forma de reduzir eventos episódicos devido a fontes antropogénicas, como a combustão, é diminuir a poluição atmosférica de base, daí também a importância de passarmos a ter cada vez mais energias limpas.
No entanto, o problema é que existe poluição atmosférica vinda dos incêndios florestais. Eles parecem ser só naturais porque acontecem em florestas, mas também são influenciados pela mudança no clima. Há áreas cada vez mais secas e quentes e esta é a prescrição para os incêndios florestais de grande magnitude. Isto é algo que, infelizmente, não temos meios para lidar a curto prazo. Quanto mais cedo atacarmos as emissões que aumentam a temperatura, melhor será para nós.
Quais são as medidas que estão nas nossas mãos para mudar isto?
Claro que cada um de nós pode fazer algo para contribuir de alguma forma, mas só está ao nosso alcance uma pequena parte. O grande papel está no lado dos governos, porque são eles que podem regulamentar e fazer mudanças a grande escala. O nosso papel está em fazer o que está mais certo, como na poupança de energia. Contudo, o nosso grande contributo será pôr pressão nos governos para que possam adoptar regulamentações. A solução está aqui tanto para a qualidade do ar no interior como no exterior.
Foi uma das vozes da ciência durante a pandemia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) levou algum tempo a considerar os aerossóis como uma importante forma de transmissão do SARS-CoV-2. Porque demorou tanto tempo? Houve longas discussões sobre este assunto e chegou mesmo a ser uma das principais autoras de cartas abertas para mostrar que os aerossóis [partículas de muito pequena dimensão em suspensão no ar] eram uma importante fonte de transmissão.
Houve uma divisão entre a comunidade científica e a comunidade médica, ou melhor, algumas facções da comunidade médica. A comunidade científica compreendia perfeitamente que este era um vírus como todos os outros e era transmitido através do ar [os tais aerossóis]. Era física muito simples. Sabíamo-lo também por todo o trabalho científico que tínhamos já feito, mas a formação da comunidade médica é um pouco diferente. A divisão entre aerossóis e gotas era algo que a comunidade científica conhecia. Contudo, havia dogmas sobre este assunto e a comunidade médica, ou partes dela, não compreendia muito bem a divisão entre gotas e aerossóis [que são de dimensão bem mais reduzida].
Agora é consensual que este vírus e outros podem ser transmitidos por aerossóis? Porque devemos ter mais pandemias…
Tudo o que está ligado ao tracto respiratório em princípio está no ar. Gostaria de dizer que existe um consenso, mas continuamos a ouvir vozes de algumas facções da medicina que dizem que não é assim. Essas vozes não são fortes neste momento, mas não ajudam, sobretudo quando se colocam dúvidas e isso é transmitido aos governos, e se depois tomam alguma decisão com base nisso.
Desde então, há orientações ou outros documentos, por exemplo, da OMS, para dizer definitivamente que esta é uma forma de transmissão dos vírus ou houve outras acções?
As orientações da OMS têm melhorado. A transmissão por aerossóis é elencada agora como um factor ligado a uma boa ventilação ou não. O que ainda não aconteceu foi um olhar mais alargado da qualidade do ar no interior dos edifícios, como normas que sejam legisladas. Até termos normas que sejam obrigatórias, não acontecerá muita coisa. Cada país tem normas definidas para o ar exterior e elas são aplicadas, mas praticamente nenhum país tem normas para a qualidade do ar interior que estejam legisladas. Este tem sido o foco do meu trabalho actualmente: como se pode fazer com que haja uma regulamentação nacional para a qualidade do ar interior? Sem este esforço, a qualidade do ar nos edifícios não vai melhorar.
Como tem feito esse trabalho?
Convencer os governos não é propriamente uma tarefa fácil e nenhum de nós conseguirá fazer isto sozinho. Por isso, temos de concentrar a nossa acção em grupos de cientistas, especialistas de diferentes áreas, incluindo da economia. Este também é um aspecto económico: ouvimos muitas situações em que se diz que estas mudanças vão ser dispendiosas, o que não pode estar mais errado. Embora um novo edifício que tenha uma concepção para que seja assegurada uma boa qualidade do ar possa ser mais dispendioso, isso irá evitar muitas infecções ligadas à poluição do ar, diminuirá o absentismo ou aumentará a produtividade, o que tornará os ganhos superiores ao custo inicial. Todos ganharemos se conseguirmos mostrar isto aos governos.
Quais devem ser as medidas mais urgentes para os governos tomarem?
Há dois grandes aspectos. Por um lado, os governos dizem que não podem trocar uns edifícios por outros de um dia para o outro, o que é correcto. Não podemos fazer com que todos os edifícios cumpram as normas de qualidade do ar de um dia para o outro. Temos de olhar para duas escalas temporais. Uma delas é a dos novos edifícios. Quanto mais depressa tivermos as novas normas, mais depressa começaremos a conceber novos edifícios que cumpram essas normas. Ao mesmo tempo, temos de pensar no que fazemos aos edifícios que já existem, o que significa que teremos de os reequipar, e isso também leva o seu tempo.
Num artigo que publicou na revista científica Science em 2021, recomendou uma mudança de paradigma para combater as infecções causadas pela má qualidade nos edifícios e que se deve regular de forma mais rígida a qualidade do ar nos edifícios. Como pode esse paradigma mudar?
Nesse artigo, o foco foi a mudança de paradigma em relação à transmissão de infecções. Mas também dizíamos que essa mudança de paradigma deveria abranger outros riscos. Não podemos resolver um problema sem vermos potencialmente outros problemas que podem estar perto ou que se estejam a desenvolver. Temos de olhar para o edifício de forma holística.
Depois da pandemia, pensam mais sobre a qualidade do ar no interior dos edifícios? O paradigma começou a mudar?
Houve certamente uma mudança. Há agora mais consciência de que esse problema existe. Em alguns países, já começaram a ser feitas algumas acções. Talvez a maior mudança tenha sido nos Estados Unidos, onde o Governo iniciou programas de qualidade do ar no interior dos edifícios. Na Bélgica, por exemplo, há regulamentação sobre a concentração de dióxido de carbono, que é um poluente importante emitido pelos humanos.
Quando sabemos que um edifício tem uma boa ventilação?
Se houver uma grande concentração do vírus no ar, não conseguimos sabê-lo só assim. Não nos cabe a nós saber qual é a qualidade do ar no edifício, tal como não é da nossa responsabilidade assegurar a qualidade do ar no exterior. Mas, enquanto esperamos pelas normas, aquilo que podemos fazer é o que estão a fazer neste momento e ver com um aparelho qual é a concentração de dióxido de carbono no ar.
Recebeu agora o prémio “Para Mulheres na Ciência”, da Fundação L’Oréal e da UNESCO. Que ponto da situação faz da sua carreira?
Estou extremamente orgulhosa deste prémio. Mas sinto que não é um prémio só para mim, mas também é um reconhecimento para a área em que trabalho [a qualidade do ar]. Se esta área não fosse realmente importante, talvez não tivesse sido notada. Espero que o meu prémio aproxime ainda mais as pessoas desta área.
A jornalista viajou a convite da L’Oréal