Fotofestiwal, um festival “político e activista” às portas da guerra
Na Polónia, por amor à arte, à paz e à liberdade, dois festivais de fotografia fundiram-se com o Fotofestiwal, em Lodz, para colocar em perspectiva os conceitos de opressão, poder e activismo.
Na Polónia, mesmo ao lado de uma Ucrânia em guerra, não se ouvem os morteiros, não se vê destruição, não se sente o cheiro a pólvora, a morte. Nem por isso a guerra está ausente das mentes, das vidas e da arte que se produz e se mostra no país onde 1,5 milhões de ucranianos encontraram refúgio desde Fevereiro de 2022. Assim, por amor à arte, à paz e à liberdade, três festivais de fotografia fundiram-se num só, no centro da Polónia, para colocar em perspectiva os conceitos de opressão, de poder e activismo.
Na cidade pós-industrial de Lodz, conhecida por muitos como a “Manchester polaca”, as várias exposições que compõem o Fotofestiwal decorrem no interior de museus, galerias e de antigas fábricas da indústria têxtil que foram reconvertidas em espaços culturais. A presente edição, que decorre entre o dia 15 e 25 de Junho e que coincide com o 22.º aniversário do evento, é dedicada ao tema “Esperança” e tem dois convidados de honra: o festival ucraniano Odesa Photo Days e o festival bielorrusso Month of Photography in Minsk, que, devido à invasão russa da Ucrânia (mas por razões bem diferentes – já lá vamos), deixaram de poder realizar-se nos países de origem.
Em conversa com o P3 no interior dos escritórios do festival, o curador e sociólogo polaco Krzysztof Candorowicz, um dos responsáveis pela programação do festival, explica que a temática da presente edição está profundamente ligada à actualidade política mundial, mas também à onda de solidariedade que se formou na Polónia logo após o estalar da guerra para o apoio aos milhões de refugiados que entraram ou atravessaram o país. “Foi um momento muito pesado para nós”, recorda. “Mas, ao mesmo tempo, também muito bonito, porque muitos milhares de polacos abriram as portas das suas casas para receberem famílias ucranianas. As pessoas estavam a partilhar tudo o que tinham e isso foi muito emocionante.”
Ao contrário do que aconteceu noutros países em resposta a outras vagas de refugiados de guerra, na Polónia não se formou um único campo de refugiados. “Tudo isto nos fez pensar que existe esperança e que as pessoas são incríveis. As notícias estão sempre muito focadas em factos e nós queremos, preferimos, debruçar-nos sobre a reflexão, sobre a tomada de consciência. A história da Humanidade não se resume a guerra e violência, também há esperança e generosidade.”
Apesar da importância do conflito na concepção da presente edição do festival, que surge engajada com o tema da edição anterior, “Comunidade”, marcada pela primeira participação dos dois festivais vizinhos, o visitante consegue dar, se desejar, a volta ao mundo através da obra das várias dezenas de artistas que exibem o seu trabalho em Lodz.
Odessa refugiada em Lodz
Num complexo fabril que funcionou até 1990 como centro de produção de algodão, o Centro OFF, junto a uma das mais extensas avenidas comerciais da Europa, a Piotrkowska – que tem cerca de 4,2 quilómetros e atravessa grande parte da cidade de Lodz – encontram-se patentes as exposições trazidas pelos festivais Odesa Photo Days e de Month of Photography in Minsk. No segundo andar de um edifício desgastado pelo uso, numa sala que compreende todo um enorme piso, estão dispostos os trabalhos que, a convite do Fotofestiwal, a curadora e artista ucraniana Kateryna Radchenko, optou por trazer até Lodz.
Ao P3, a directora artística do festival Odesa Photo Days conta que, ao contrário da edição anterior, de 2022, em que optou por expor no mesmo espaço trabalhos realizados exclusivamente por fotógrafos ucranianos, no presente ano deseja mostrar que a sua abordagem e forma de pensar mudaram. “Para esta exposição colectiva convidei artistas de cinco países”, explica, referindo-se à Ucrânia, Geórgia, Irão, Cazaquistão, Quirguistão. “Não quis abordar somente o caso ucraniano, a guerra na Ucrânia, mas também a relação que existe entre a guerra e outros fenómenos políticos e sociais que ocorreram nesses territórios nos últimos 30 anos.”
Entre os países que Radchenko escolheu ver representados há diferenças e semelhanças: há países pós-soviéticos, que ainda buscam por uma identidade desvinculada da URSS, e outros países que, sem relação de poder estabelecida de forma oficial, são aliados da Rússia, como é o caso do Irão. “Estes cinco países estão unidos pela mesma história: a da violência que é usada pelos órgãos de poder para a manutenção do próprio poder em prejuízo das sociedades que governam.” A exposição colectiva, intitulada The Transition State, tem como objectivo estabelecer paralelos entre as várias realidades políticas, apontando aos processos de repressão, mas também aos de resistência organizada.
O fotógrafo Shailo Djekshenbaev, autor da série fotográfica Perestroika (2004) descreve o chão despedaçado em torno de um monumento a Lenine, na praça do Instituto Politécnico em Bishkek, Quirguistão. “O processo de reparação da praça demorou tanto tempo que na série se torna visível a forma como os cidadãos se adaptam ao novo pavimento, como traçam novos percursos para poderem alcançar o outro lado da praça – algo que considero muito simbólico”, explica Kateryna. “Fala-nos do processo de adaptação a uma nova vida em ruínas e traz uma mensagem visual positiva.”
A obra multimédia do iraniano Hossein Fatemi, que descreve do ponto de vista de uma enfermeira e de vítimas de violência policial ocorrida nos mais recentes protestos no Irão, traz um inusitado retrato de proximidade. Um testemunho pungente que não fica atrás de uma outra obra fílmica, desta feita ficcional, do georgiano Vajiko Chachkhiani. “O seu filme é sobre uma pessoa que tem de transportar um monumento [do que parece ser um líder político] preso por uma corda a uma carrinha até ao centro de Tbilissi”, narra a curadora. “Quando chega à cidade, o monumento já não existe, desintegrou-se. É belíssimo e muito simbólico. Está implícito, no filme, que todos os líderes serão destruídos, que irão desaparecer, e que é apenas uma questão de tempo.” Não muito longe das obras multimédia, a instalação de néon de Maria Matiashova “inspira e expira” as palavras “Empire Expire”, aludindo também para a temporalidade e a inevitável finitude dos impérios.
“No presente, as pessoas estão a lutar pelo seu futuro e a pagar um preço muito elevado”, lamenta a ucraniana. “Mas tudo é temporário e pode sempre mudar – para melhor ou para pior. As duas opções estão sempre disponíveis.”
A Bielorrússia, a propaganda, o anonimato
No terceiro andar, a exposição In Betweenland, organizada pela Month of Photography in Minsk e com curadoria anónima, tem como objectivo traçar um negro retrato da repressão sofrida pelos cidadãos bielorrussos por parte do governo de Lukashenko, um forte aliado da Rússia. Todos os trabalhos expostos pertencem a artistas bielorrussos – e muitos, à semelhança do/a curador/a, não assinam os trabalhos por medo de represálias.
Destaca-se Red Fate, de Masha Svyatogor, uma reinterpretação em camadas de um símbolo da cultura soviética com que todos os bielorrussos crescem, ainda leccionado em escolas e difundido amiúde pela televisão. A sua presença vermelha, negra e tridimensional impõe-se no espaço, tornando-a praticamente na obra central.
O trabalho do artista bielorrusso que assina IH, Young Soldiers, reúne imagens reais que foram recolhidas no Instagram através da pesquisa da hashtag #будущийзащитник, que significa futuro soldado. Elas descrevem “crianças de diferentes idades vestidas de soldados, quase sempre utilizando armas, metralhadoras, etc.”, explicou IH ao P3, a partir da Bielorrússia, numa entrevista por e-mail. “Os pais querem mostrar ao mundo que têm um filho e que ele será o seu defensor, no futuro.”
A visão de crianças de idade muito tenra vestidas com uniforme militar e de arma em punho é suficiente para prender a atenção do espectador. No entanto, existem várias camadas implícitas. “Quero colocar os bielorrussos a olhar para si próprios”, explica. “Os pais não são obrigados a fazer estas fotografias e a postá-las na internet, porém continuam a fazê-lo e achá-las bonitas, maravilhosas, fascinantes. Nós, enquanto sociedade, estamos convencidos de que a guerra é má. Não é claro para nós.” Em 2019, quando IH desenvolveu o projecto, “já era claro que esta militarização das crianças não iria acabar bem”, comenta.
IH escolheu manter anónima a sua identidade porque desconhece as consequências que poderia vir a enfrentar no país onde vive se essa fosse revelada. “Faz parte da paranóia em que vivemos, presentemente. Eu sei que não fiz nada de errado, que não quebrei nenhuma lei, mas na Bielorrússia de hoje não é preciso quebrar nenhuma lei para se ser detido ou preso.” A mensagem política que transmite no projecto que exibe no Fotofestiwal pode deixá-lo numa situação de vulnerabilidade diante das autoridades, argumenta.
Durante a inauguração da exposição colectiva, a organização pediu aos espectadores que não fotografassem os artistas presentes para proteger a sua identidade. Após os protestos de 2020 e 2021 contra a recandidatura de Lukashenko à presidência após 25 anos de governo, que foram violentamente reprimidos, as violações dos direitos humanos têm vindo a multiplicar-se na Bielorrússia.
A volta ao mundo em opressão e resistência
Os trabalhos reunidos pelas três direcções artísticas provêm não apenas da Polónia, Ucrânia e Bielorrússia; eles têm origem nos quatro cantos do mundo e debruçam-se sobre fenómenos de resistência civil à opressão de governos, corporações, movimentos extremistas ou mesmo de crime organizado. É no Art_Inkubator que têm lugar grande parte das exposições da 22.ª edição do Fotofestiwal. Krzysztof Candorowicz destaca, em conversa com o P3, as três exposições subordinadas ao tema Hope (Esperança) da curadoria de Sergio Valenzuela-Escobedo, que enfocam as realidades do Peru, Colômbia e México.
Em Ipáamamu - Stories of Wawaim, Eleanore Lubna e Louis Matton documentam a evolução de uma comunidade nativa da floresta amazónica do Peru desde os anos 1950 até à actualidade. A partir de fotografias (originais e de arquivo) documentos, objectos e vídeos, os artistas franceses dão conta das várias estratégias adoptadas pela comunidade Wawaim para a manutenção da sua estrutura política e social contra interferência externa, colonizadora.
O projecto de fotografia documental Mama Coca, da francesa Nadège Mazars, residente na Colômbia desde 2007, e a instalação Oro Verde, do colectivo Ritual Inhabitual Collective, trazem retratos de luta, resistência, de comunidades locais contra grandes corporações ou indústrias (e crime organizado). “Em ambos os casos, trata-se de grandes exemplos de comunidades que se tentam proteger desses interesses corporativos”, remata Candorowicz. No espaço expositivo, Oro Verde, que surge sob forma de instalação, rouba toda a atenção. O falso (obviamente meticuloso) caos colorido, vibrante, a imperfeição dos cortes dos materiais, as figuras, ora aterradoras ora simplesmente joviais, transformam um tema de grande relevância política no panorama mexicano e mundial (já que toca a produção e, indirectamente, o consumo de abacate) num festim para o olhar.
A secção Open Call surpreendeu pela elevada qualidade das obras em exposição. Entre 1.107 candidatos, o júri seleccionou apenas seis séries, entre as quais se destacam a do colombiano Santiago Escobar-Jaramillo, cujo projecto colaborativo El pez muere por la boca está infundido de humor, o trabalho histriónico e visualmente impactante da polaca Agnieszka Sejud, e o rigor composicional do italiano Gabriele Cecconi, que dedicou umas semanas ao registo fotográfico da paradoxal realidade hiper-rica do Kuwait.
A exposição colectiva On The Verge, por sua vez, interpela o visitante e coloca a seguinte questão: “Que tipo de arte precisamos em tempos traumáticos, em tempos procura desesperada por esperança?” Os artistas da rede FUTURES Cian Burke, Mark Duffy, Pauline Hisbacq, Julia Klewaniec, Alice Pallot, Daniel Szalai e Ugo Woatzi tentam responder partilhando histórias que tocam vários temas contemporâneos: a igualdade de género, o crescimento do populismo na Europa, a ecologia e a sustentabilidade. Destacam-se o trabalho The Brexit Archive, do irlandês Mark Duffy, que coleccionou e fotografou obsessivamente objectos relacionados com o Brexit – entre eles, uma boneca vudu de Boris Johnson ou mesmo um boné Make Britain Great Again – e Silent Racism, da polaca Julia Klewaniec, que aborda as subtis formas racismo que estão presentes na língua polaca e na necessidade de recodificação de vocábulos.
Na exposição colectiva In Our Hands, ainda no edifício Art_Inkubator, três exposições individuais propõem uma reflexão acerca dos desafios colectivos da humanidade. Um deles está novamente associado às migrações e à intolerância, tema que o artista de origem somali residente em Bruxelas aborda tendo por base a sua experiência pessoal, familiar e a cultura das comunidades marginalizadas que habitam a Europa, da qual sente fazer parte. Numa fusão elegante de fotografia documental e com fotografia de arte, Rami Hara utiliza o hijab e o durag como elementos que conferem nobreza, dignidade, exaltando a riqueza e o privilégio no contacto com o multiculturalismo.
Um festival político, declaradamente activista
O Fotofestiwal quer, assumindo uma postura declaradamente activista em prol dos direitos humanos, dos animais e de causas ambientais, mostrar ao seu público que existem muitas formas de pensar o mundo e de moldá-lo. “Não somos um festival de fotografia, Fotofestiwal é apenas um nome”, esclarece Krzysztof Candorowicz. “Usamos a fotografia como meio, mas a nossa missão é difundir as mensagens políticas e ambientais que consideramos relevantes.”
A estrutura horizontal da organização do próprio festival reflecte um conjunto de ideais políticos que não se alteraram desde a sua formação, em 2001. “No início, éramos apenas um grupo de estudantes de Sociologia que ocupou as fábricas que hoje fazem parte deste centro cultural”, refere, aludindo para o que se tornou num dos centros culturais mais relevantes da cidade após profundas obras de requalificação levadas a cabo pelo município, o Art_Inkubator. “Na altura, com base em economia de partilha, começámos a organizar três eventos na cidade, a Bienal de Arte Contemporânea, o Fotofestiwal e o Festival de Design.”
A presente edição do Fotofestiwal contou com três presenças portuguesas, mas nenhuma no interior dos museus. Lua Preta, BirdZzie e Ohxala animaram as festas do festival. “Este é um projecto que tem muita influência portuguesa”, afirma Candorowicz. “Existe uma relação entre o Fotofestiwal e a Bienal de Fotografia do Porto que é bastante frutífera e que pretendemos manter no futuro.”
O P3 viajou a convite do Fotofestiwal