Museu do Tesouro Real: um ano depois

É clara a necessidade de melhorar o que dificulta a própria função do museu, e não é para nós uma surpresa que o visitante se confronte com uma “desafiante tarefa de perceber o que é dado a ver”.

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Inauguração do Museu do Tesouro Real em 2022 Daniel Rocha
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Um ano passou desde a abertura do Museu do Tesouro Real, o novo pólo museológico do Palácio Nacional da Ajuda criado de raiz para trazer a público um excepcional património de ourivesaria e joalharia até agora inacessível, e muito esperado. Um tesouro, que ganha coesão, coerência e contexto pela ligação à coroa portuguesa e às funções que desempenhou na representação do Estado ao longo da história.

Ao fim deste período, a experiência dos visitantes consolidou e sublinhou as sérias críticas que o design museográfico desta exposição suscitou internamente, desde o início do processo. Algumas vozes constataram publicamente os problemas conceptuais e os erros de execução de um projecto que, quanto mais não fosse pelo investimento público realizado, deveria ser exemplar, levantando questões sobre como foi possível aqui chegar (Maria Isabel Roque, "Um tesouro real entre muitos brilhos e seus reflexos"; e Lucinda Canelas, no PÚBLICO, "Museu do Tesouro Real: a colecção merecia muito melhor").

Como membros do comissariado e consultores científicos, incumbidos das escolhas museológicas, e no seguimento de uma carta-balanço que enviámos, em Junho de 2022, às diferentes instâncias da direcção do Museu, insistimos que, sob pena de não se atingir plenamente a missão deste museu, estas e outras justas críticas têm de ser consideradas.

Na impossibilidade, que marcou todo o processo, de influirmos em escolhas do projecto de design museográfico, há um ano que a equipa de design está em posse de uma relação com as mais urgentes correcções a fazer na exposição, persistindo, além destas, a iluminação deficiente, peças tapadas, textos truncados.

Quando o projecto do museu foi lançado, há mais de seis anos, a direcção do Palácio Nacional da Ajuda garantiu, para a definição do discurso expositivo, um corpo científico sólido e conhecedor das colecções a expor. Nesse contexto, foi possível delinear uma narrativa de exposição na qual a maioria das peças ganha novas leituras e se podem redescobrir diálogos perdidos entre as obras, trabalho assente na revisão integral do estado da arte e da consequente proposta de novas atribuições, datações e contextos para inúmeras obras.

A mesma sustentação científica justificou generosos depósitos e empréstimos de obras de arte por parte de coleccionadores particulares e de outras instituições nacionais, como o Museu Nacional de Arte Antiga, o Palácio da Pena e o Museu dos Coches.

Os estudos redigidos para o catálogo, por académicos portugueses e estrangeiros, como complemento essencial à exposição e prontos há mais de dois anos, só agora, um ano depois da inauguração do museu, são publicados. Uma ausência que foi tão mais grave quando, na exposição, são patentes as deficiências de comunicação e até de visibilidade das peças expostas.

Estes erros decorrem, em grande parte, da falta de um indispensável diálogo, no qual insistimos, como equipa científica (que realizou a investigação e estabeleceu o discurso expositivo), junto da equipa de design (responsável pelas soluções expositivas, vitrines, iluminação, ou escolhas gráficas). Apesar de inúmeras chamadas de atenção, em que foram apresentadas discordâncias unânimes e fundamentadas da equipa científica, não foi possível encontrar soluções consensuais para o projecto de design, que se sobrepôs, invariavelmente, aos pedidos do comissariado e consultores.

Assim, a execução do museu avançou com um nítido alheamento ou descarte das recomendações e pareceres especializados, nomeadamente quanto aos materiais e à iluminação mais adequados à exibição de joalharia, ourivesaria ou têxteis; o mesmo sobre a inadequação de encenações projectadas, como na mesa principal da baixela Germain, em que personagens, figurinos e comportamentos colidem, como erro grosseiro, com o que se expõe. Advertências foram feitas, ainda, sobre a deficiente leitura de legendas e textos de enquadramento. Tudo isto foi expresso em reuniões e está registado em pareceres. E para tudo haveria vias de consenso, sem onerar a criatividade.

Apenas a excepcional qualidade das obras expostas – nos casos em que não são obliteradas pela museografia ou pela falta de iluminação – pode, por momentos, iludir o notório desconcerto de algumas das soluções adoptadas. Os suportes de acrílico brilhante anulam, em reflexos e brilhos, as peças neles expostas; os vidros não são anti-reflexo; os bustos e ripas assumem o protagonismo, em detrimento das peças que suportam. Falta respiração, hierarquia, visibilidade e sobra ruído visual.

É clara a necessidade de melhorar o que dificulta a própria função do museu, e não é para nós uma surpresa que o visitante se confronte com uma “desafiante tarefa de perceber o que é dado a ver”. São vários os casos em que o Museu do Tesouro Real se apresenta como que bloqueado entre “dois museus”: um estruturado pela equipa científica, cuja selecção de peças, narrativa e textos de enquadramento estão lá, ainda que abafados pelas escolhas materiais daquele outro museu, projectado surdamente pelo design que, em última instância, se pôde impor às guias e linhas vermelhas que, cada especialista, como era sua função, definiu para orientação das escolhas museográficas. Linhas objectivas, técnicas e científicas, repetidamente lembradas, e para lá das quais a fruição das obras e a sua comunicação ficariam, como ficaram, prejudicadas.

Uma nova direcção assumiu a gestão do Museu do Tesouro Real, trazendo vontade e novo alento. Desde já, é com manifesto agrado que assistimos ao desbloquear da publicação do catálogo, tendo sido necessário, também a este nível, minimizar persistentes problemas de concepção gráfica.

Actuar sobre um tesouro patrimonial é cuidar do que ele transmite. Cabe ao Museu do Tesouro Real a responsabilidade de comunicar um legado histórico e artístico nacional na sua continuidade secular, com os testemunhos inigualáveis das obras expostas.

Hugo Miguel Crespo
Inês Líbano Monteiro

João Júlio Rumsey Teixeira
João Pedro Vieira
Miguel Metelo de Seixas
Teresa Leonor M. Vale

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