Faltam dez minutos para a hora marcada (19h) quando a matilha começa a aparecer. “Olha a Pandora!”, diz uma mulher ao seu cão, reconhecendo a preguiçosa cadela preta que é uma cara conhecida do companheiro canino. “Pelo amor de Deus, Ruca...”, lamentará pouco depois uma outra mulher, reprovando a decisão do cão de pequeno porte cumprimentar Pandora com um nariz no traseiro (um clássico).
Olhamos de novo para o relógio. Ainda não são 19h, mas já há um pequeno e espaçado círculo de humanos e cães a rodear Joaquim Durães e Patrícia Brito. Aqueles que juntos formam o duo OMNE já podem começar a fazer algo com a mesa de mistura e as pouco corpulentas colunas de que dispõem.
Escutaremos samples de piano e instrumentos de sopro coabitando com batidas que parecem estar a flutuar. O cenário será algo jazzístico no início, psicadélico do início ao fim. Trip-hop e dub darão as coordenadas, mas nunca levando a coisa para lugares demasiado inescrutáveis, e sempre mantendo o volume baixinho. Afinal de contas, há cães na plateia. E esta sessão DJ, de cerca de uma hora, foi preparada a pensar neles.
O que estamos a descrever aconteceu nesta quinta-feira, na Quinta do Covelo (Porto). Depois de não o ter podido fazer há um mês, devido à previsão de chuva, a dupla OMNE deu início ao ciclo Música Entre Espécies Companheiras, uma série de concertos ou DJ sets concebidos a pensar não só em melómanos humanos, mas também nos seus amigos caninos e naquelas que são as suas sensibilidades auditivas.
A iniciativa é uma proposta da Galeria Municipal do Porto, que durante os próximos meses ocupará mais cinco espaços verdes da cidade, com momentos que serão uma espécie de evolução face ao arranque.
Depois desta sessão DJ na Quinta do Covelo, os próximos eventos serão protagonizados por duplas de artistas que nunca trabalharam juntos (a única excepção é a penúltima data, que ficará por conta das Cobracoral). Em cada actuação, serão apresentadas músicas originais, escritas na semana do concerto em residências artísticas. A ideia é que os criadores componham tendo em conta aquilo que, segundo a ciência, será mais apelativo ou apaziguante para os cães (já lá vamos).
Para avançar com esta iniciativa, a Galeria Municipal do Porto e a editora discográfica Lovers & Lollypops, responsável pela curadoria do ciclo, inspiraram-se n’O manifesto das espécies companheiras, de Donna Haraway — autora também de Um manifesto ciborgue, ensaio de referência que cruza ciência, tecnologia e feminismo.
No texto que ajuda a dar nome à série de concertos, a filósofa americana, conhecida pelo seu pensamento crítico sobre o antropocentrismo (doutrina que põe o humano no centro do mundo), fala das espécies humana e canina como duas que evoluíram juntas, num regime de dependência mútua. Mais do que “animais de companhia”, os cães constituem uma “espécie companheira”, defende Haraway. Este termo, acredita, ilustra melhor a natureza simbiótica dos laços que criamos com eles.
Juan Luis Toboso, curador-sénior da Galeria Municipal do Porto, refere que até algo como uma série de concertos para cães pode, no seu entender, servir para imaginarmos “futuros que não sejam unicamente antropocêntricos” e procurarmos “uma nova forma de entender a nossa relação com os animais”. Uma forma “não-hierárquica e construtora de novas subjectividades”, diz ao P3.
Vontade de experimentar
Joaquim Durães, que além de ser uma das metades do grupo OMNE é também um dos fundadores da Lovers, explica a forma como a editora abordou a curadoria deste ciclo: “Os músicos que escolhemos são de diferentes linguagens artísticas. Mais do que um género musical, procurámos pessoas com vontade de experimentar, de explorar novos caminhos. Ainda nunca tinham feito nada do género.”
“Também procurámos músicos que fossem já companheiros, isto é, que tenham cães. Assim, eles já começam a testar em casa”, acrescenta o responsável pela editora onde os artistas farão as residências.
Durães diz ainda que um instrumento que foi importante para pensar a sua sessão DJ, e que já foi passado aos futuros protagonistas do ciclo, são as experiências académicas feitas em anos recentes por uma investigadora escocesa.
Licenciada em Ciências Bioveterinárias pela Universidade de Glasgow, Amy Bowman colaborou, durante o doutoramento (2013-2018), com a Sociedade Escocesa para a Prevenção da Crueldade contra os Animais (SSPCA).
Em alguns dos canis desta instituição de caridade, a investigadora, que desejava perceber o que pode ser feito para reduzir o stress dos cães que lá são acolhidos e tratados, começou por fazer experiências ligadas à prática de exercício físico. Depois, a SSPCA sugeriu que estudasse os possíveis benefícios da música.
Foi então que, inspirada por experiências anteriores de outros investigadores, Bowman começou a pôr música clássica a tocar naqueles canis.
Para as suas primeiras experiências com música formou vários grupos de dois a cinco cães, dois de cada vez. A metodologia era simples: duas semanas de monitorização. Um dos grupos passava os primeiros sete dias num ambiente silencioso (controlado), enquanto o outro passava esse mesmo tempo a ouvir Beethoven, Bach, Mozart... Depois, as condições invertiam-se.
Bowman monitorizou a variabilidade da frequência cardíaca (isto é, o intervalo de tempo entre cada batimento do coração) de todos os animais. Viu que era maior quando os cães estavam a ouvir música. Ou seja, o coração batia menos aceleradamente — em resumo, menos stress.
Os benefícios foram efémeros (os animais ter-se-ão habituado rapidamente às mesmas sonoridades), pelo que Bowman agitou as coisas no segundo conjunto de experiências. Mostrou a novos grupos de cães cinco tipos diferentes de música, também ao longo de uma semana: música clássica, soft rock, soul com ares de Motown, pop e reggae.
Apontou que os animais tendiam a ladrar menos e a passar mais tempo deitados quando havia música a tocar. Identificou também reggae e soft rock como os géneros aparentemente mais tranquilizadores. As suas descobertas foram publicadas, em 2017, na revista científica Physiology & Behavior (que dois anos antes também já divulgara os resultados do estudo com apenas música clássica).
Nada de sons repentinos
Hoje com 32 anos (e, curiosamente, a iniciar uma carreira musical), Amy frisa ao P3 que, dadas as diminutas amostras — os dados apresentados no segundo estudo vêm da monitorização de apenas 38 cães, por exemplo —, não é possível generalizar a partir dos resultados obtidos.
Acrescenta que os cães observados variaram da primeira experiência para a segunda, o que para a robustez dos estudos constituiu outra “dificuldade” (para os animais foi “óptimo”: eles “foram sendo adoptados” ao longo do tempo).
“Não conhecia o historial completo dos cães”, prossegue, continuando a elencar potenciais fragilidades. “Imagine-se que, antes da entrada no canil, um deles sofrera abuso de um dono que em casa ouvia bastante pop. Eu não conseguia garantir que os cães não associariam determinadas sonoridades a experiências passadas.”
“O objectivo principal foi tentar encontrar, em traços gerais, os sons que poderíamos pôr a tocar nos canis [da SSPCA] para tentar reduzir o stress daqueles cães”, afirma. E o esforço terá valido a pena. Bowman diz que, desde que acabou os estudos, a SSPCA instalou colunas nos seus canis, incluindo aqueles em que a investigadora não fizera experiências.
Bowman fala num terceiro estudo que tentou fazer, este para identificar os elementos específicos que parecem dar a uma música aquilo de que os cães gostam ou que os relaxa.
Nada seria publicado, mas Bowman sugere que as experiências que fez para essa investigação inacabada permitem-lhe agora fazer alguns “palpites instruídos”.
Os cães costumam sentir-se mais relaxados quando uma canção tem entre 80 e 120 batidas por minuto, começa por dizer. Não gostam muito de sons repentinos, continua, dizendo que mudanças muito bruscas podem assustá-los.
Se uma composição for demasiado elaborada, com vários instrumentos diferentes a interagirem uns com os outros de forma aventureira, os cães podem ter dificuldade em “decifrar” o que está a acontecer, prossegue.
Fala ainda na questão do volume. Diz que os cães conseguem ouvir ultra-sons que os humanos não conseguem captar. São, portanto, animais com muita sensibilidade auditiva, pelo que é preferível que os decibéis não sejam muito invasivos.
Bowman diz que, para donos de cães com ansiedade, a aposta na música pode valer a pena. “Os cães podem sentir stress em muitas situações. Quando entram no carro, quando estão a passear e se cruzam com outros cães na rua, quando o dono sai de casa para ir trabalhar (se tiverem ansiedade de separação), quando vão ao veterinário... A música pode desempenhar um papel interessante.”
“Um cãovívio particular”
Imagens da Quinta do Covelo: com 30 minutos de DJ set, o círculo de espectadores, humanos e caninos começa a ganhar mais elementos (não somos bons com este tipo de contas, mas são garantidamente algumas dezenas de pares). Os cães, estejam eles a prestar mais ou menos atenção à música, estão efectivamente a ladrar pouco. Bem, quase todos: há sempre um ou outro que, de vez em quando, começa a avistar um possível novo amigo e fica enérgico.
Letícia Bassan está com dois cães, Wesley e Piky — o primeiro tem apenas três anos, a segunda é bem mais velha (11). Não são seus: ela é pet sitter.
A mulher brasileira de 30 anos encontrou nesta sessão DJ justamente aquilo que contava encontrar: “um ambiente bem bacana”, com alguns cães “deitados com os donos” na relva. “Isto também é bom para o networking” dos animais, graceja ainda, comentando a possibilidade de fazerem novas amizades.
Letícia percebe perfeitamente a agitação de um ou outro canino. “Se calhar, são animais que não saem tanto de casa. Estando aqui ao ar livre, e havendo tantos outros cães à sua volta, é normal ficarem mais contentes.”
Ficamos depois à conversa com Gui Gaspar. Jovem de 29 anos, está com Mukha. Menciona o canal de televisão Dog TV para dizer que não lhe era estranha a ideia de “se pensar em música para ajudar os bichinhos a relaxar”. “Mas haver um evento real... Suponho que seja relativamente inédito”, conta. De repente, lá fora, só nos lembramos do pequeno concerto que Laurie Anderson deu para cães em Times Square (Nova Iorque), em 2016.
“É divertido, está aqui toda a gente”, continua, referindo-se à comunidade local de donos de cães, muitos dos quais já se conhecem uns aos outros (quem está menos inserido neste círculo sente menos à-vontade para permitir que os seus cães cheirem os outros, mas veremos, com o progredir da sessão DJ, algumas tentativas de contrariar o medo).
Gui descreve o que entende como “um fenómeno de bairro”. “Há uma proximidade que se cria: vais ao jardim passear o teu cão, encontras outras pessoas que estão a fazer o mesmo, têm necessidades em comum, à partida também terão alguns interesses em comum... Às vezes, o pessoal organiza-se, ajuda-se mutuamente. ‘Dava-me jeito que tomassem conta do meu cão no dia x...’ Estes concertos crescem em cima disso, em cima dessa comunidade que existe.”
“São um convite a um cãovívio particular”, acrescenta, antes de opinar que este ciclo não é interessante apenas para os nossos amigos de quatro patas. Aquilo que existe em termos de oferta musical, diz, costuma estar associado a “um estilo de vida nocturno, que por várias razões não é necessariamente saudável”. “Este tipo de festa durante o dia é uma coisa que não é muito explorada — e vejo aqui que as pessoas têm vontade de que isso mude.”
São 20h03. O dócil Mukha, cão branco com manchas pretas — “Parece uma vaca”, brinca Gui Gaspar —, já passou uns bons minutos a interagir com um amigo. Uma interacção curiosa: não dá para perceber se eles estão a trocar abraços ou a encenar uma épica luta de sumo. “Sinto-me o centro das atenções por causa deste menino”, brinca o dono do cão que se aproximou de Mukha (os dois animais estão mesmo junto à mesa dos OMNE). A DJ Patrícia Brito fica a apreciar o cenário, sorriso no rosto.
Volvidos mais de 60 minutos de DJ set, alguns cães e respectivos donos já se fizeram à estrada. Os que restam começam a ouvir os tranquilizantes sons da harpa de Alice Coltrane. Tão bom, este celestial bálsamo para acabar a festa.
O próximo momento de Música Entre Espécies Companheiras acontece a 29 de Junho (quinta-feira da próxima semana), no jardim da Fonoteca Municipal do Porto. Será um concerto de Francisco Babo e Gaspar Cohen, também pelas 19h. O ciclo inclui depois apresentações a 19 de Julho, 24 de Setembro, 19 de Outubro e, para acabar, 19 de Novembro.