V. Especial vigilância na República Portuguesa
Com a Revolução Liberal (1820), a Constituição (1822) a Carta Constitucional (1826) abriu-se um novo capítulo: Portugal reconheceu a todos os nascidos no seu território o direito de serem portugueses.
Foi um ponto de viragem na história dos portugueses ciganos. Até então, sublinha Mangas, “não eram considerados portugueses, mesmo que tivessem nascido no Porto, em Lisboa ou em Faro”.
Não era uma cidadania plena. Basta ver uma portaria da polícia de 1848, que previa exigência de passaporte aos ciganos que transitassem pelo reino. E o regulamento para o serviço rural da GNR aprovado em 1920, que mandava sobre eles exercer “severa vigilância”.
Era como se fossem todos iguais. Mesmo na obra fundacional de Adolfo Coelho, de 1892, essa ideia transparece. Como diz Sousa, ao longo da história tem havido uma tendência para tomar todos os ciganos por nómadas, pobres.
Não tinha um avô que lhe contasse a História dos portugueses ciganos, mas tinha uma tia-avó que contava histórias de família. Chamava-se Esperança e guardava num velho baú uma espécie de tesouro: “Fotografias, um estojo de primeiros socorros, jornais e outras coisas mais.”
Mergulhou nesse passado. Recuou até 1827, ano do nascimento do trisavô Manuel António Botas, e foi avançando até 1957, ano da morte de António Maia, seu tio-avô. Consultou documentos, entrevistou pessoas, leu, cruzou informação e, na sua tese sociológica, mostrou que “não é verdade que os ciganos eram todos marginalizados, pobres”. Havia na Lisboa do final do século XIX ciganos que viviam em casas, eram baptizados e casados pela Igreja Católica. Sendo inegável que “a maior parte é marginalizada ainda hoje – no acesso à habitação, ao trabalho, à educação” –, parece-lhe importante compreender que naquela época já havia pluralidade. “Eram excepções, mas existiam.”
Esperança com Manuel Maia e outros familiares
Manuel António Botas era um dos mais bem pagos bandarilheiros do seu tempo. Quando se retirou das touradas, passou a dirigir corridas, primeiro em Santana, depois no Campo Pequeno. “Aparecia com as suas suíças compridas e bem tratadas, chapéu alto e bengala”, conforme citação do Dicionário das Alcunhas Alfacinhas. Também tocava guitarra e cantava fado; foi amigo de Severa, uma lenda da canção nacional. Raphael Bordalo Pinheiro desenhou-o entre outras figuras.
António Maia foi alquilador da Casa Real e participou na Primeira Guerra Mundial, em 1917, incorporado na companhia de saúde. Morreu na sequência da inalação de gases durante os combates em França. “Levou a bandeira portuguesa [no caixão] e foi acompanhado por um corpo do Exército.” A sua morte foi notícia nos jornais.
Publicação de 1873 onde se vê António Botas vestido de toureiro
Era um homem generoso e muito apreciado por ciganos e não-ciganos. “Era um tio entre os tios”, um “homem de respeito”, muitas vezes chamado para mediar conflitos. Até o Hospital de São José recorria à sua mediação.
Não chegou à história do pai, Manuel Maia, que agora lhe parece tão interessante. Era fadista. Derrubada a ditadura, filiou-se no Partido Comunista Português e integrou a célula do fado de Abril. “Quer o meu pai, quer os meus tios participaram, a seguir ao 25 de Abril de 1974, nas grandes lutas que se travaram.”
O Conselho da Revolução declarou, em 1980, a inconstitucionalidade do já referido regulamento da GNR. A “severa vigilância” sobre os ciganos constituía uma discriminação negativa, estabelecida em função da etnia. A GNR alterou-o em 1985, mas reservou “especial vigilância” aos nómadas.
Na síntese da investigadora Mirna Montenegro Val-do-Rio Paiva, os ciganos passaram da “invisibilidade social” à “marginalidade incómoda ao sistema”. À sedentarização em massa seguiu-se a concentração nos bairros sociais, o declínio do trabalho sazonal e independente, o recurso a prestações sociais, a escolaridade obrigatória, a dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, a penetração do culto evangélico, o surgimento do associativismo cigano. A sociedade maioritária foi obrigada a interagir.
Houve choques violentos. Em 1993, a Câmara de Ponte Lima decidiu expulsar uma comunidade, sob suspeita de tráfico de droga. A Procuradoria-Geral da República teve de intervir. Em 1996, formou-se uma milícia popular para expulsar uma comunidade acampada em Oleiros, em Vila Verde, conotada com o tráfico de droga. Viu-se forçada a sair e a vender o terreno. Só com ajuda do Governador Civil de Braga, Pedro Bacelar de Vasconcelos, conseguiu assentar noutro concelho.
Ainda agora a perseguição não acabou, diz Casa-Nova. “Agora, a perseguição é a manutenção dos estereótipos e o que a verbalização desses estereótipos faz. São formas diferentes das usadas no tempo da monarquia, mas fazem com que as pessoas muitas vezes se sintam acossadas e têm um efeito prático nas suas condições de vida.”
Manuel Carlos Silva faz o apanhado das generalizações abusivas que nestes cinco séculos foram sendo usadas para justificar as exclusões e as perseguições que levaram a população cigana a forjar uma cultura de resistência: “ladrões”, “intrujões”, “desordeiros”, “preguiçosos” e, nas últimas décadas, “traficantes de droga”, “subsidiodependentes”. Tudo a pesar na hora de frequentar escola, arrendar casa, arranjar emprego, lidar com instituições. E os activistas têm alertado que está pior, com a ascensão da extrema-direita e a sua entrada no Parlamento (2019).