A origem dos povos ciganos
Por muito tempo, o mistério envolveu as origens dos vários povos ciganos presentes na Europa — roma, sinti, manoush, calé, kalderash, romaniche, etc. De onde partiram? Quando? Porquê? Que obstáculos encontraram?
Ninguém tratou de fazer o registo da procedência, da travessia na Ásia, dos primeiros anos na Europa. E a tradição oral não preservou tal memória — através de histórias, provérbios, canções . Chegou a tomar-se como certo que os povos ciganos teriam tido origem no Egipto.
A linguística descobriu no léxico mais antigo palavras indo-arianas. Uma vertente inclinou-se para o Norte; outra, para o Centro antes do Norte. Estudos genéticos recentes de cientistas de vários países, incluindo a portuguesa Leonor Gusmão, apontaram para Norte-Noroeste.
Entretanto, os antropólogos estabeleceram paralelismos com grupos indianos, com preceitos de pureza e prática de endogamia. Estruturados com base na especialização laboral, iam de terra em terra trabalhando nos seus ofícios ou vendendo os seus produtos.
O início da grande viagem
Terão saído via Pérsia, hoje Irão. Quando? O desencontro académico é tal que as hipóteses vão do século III ao XI. Supõe-se que, procurando escapar à miséria e às guerras, migraram em pequenos grupos, a pé, a cavalo ou burro, em carroças.
Eia! Eia! Toque-toque. Toque-toque.
Assume-se que entraram no Império Bizantino pela Ásia Menor, alcançado Constantinopla, hoje Istambul, por volta o século XI. Admite-se a possibilidade de a invasão da Arménia ter sido o impulso que os fez avançar em direcção ao Ocidente.
Seguir-lhes o rasto vai ficando mais possível a partir daqui: vão surgindo cada vez mais documentos, sempre produzidos por não-ciganos. Remetem para trabalhadores agrícolas, artesãos, mercenários, artistas (músicos, domadores de ursos, cuspidores de fogo), quiromantes.
Virá do grego bizantino atsinganoi, que quer dizer “intocável”, a palavra “cigano” usada em Portugal, tal como cikán na República Checa, cigan na Eslováquia, zingaro em Itália, zigeuner na Alemanha, tsigane em França. Já o gitano utilizado em Espanha virá do latim aegyptanu, “egiptano”, “egípcio”, tal como o gypsies no Reino Unido e gitans em França.
Já teriam esquecido a sua origem, como tantas vezes se diz? A historiadora franco-espanhola cigana Sarah Carmona refuta tal ideia, citando documentos que os mencionam como indianos. Chama a atenção para o significado medieval da palavra “origem”. Naquela altura, “as pessoas identificavam-se de acordo com o contexto geopolítico do momento e com o proveito que podiam obter”.
Embora estivessem espalhados, havia alguma concentração no Peloponeso, no Sul da Grécia. Perto de Mondon, no monte de Gype, a que alguns chamavam Pequeno Egipto, vivia uma comunidade significativa. Por ali passavam muitos peregrinos a caminho da Terra Santa.
“Talvez tenha sido o relacionamento dos ciganos com peregrinos em lugares como Mondon que os levou mais tarde a adaptar esse disfarce quando precisavam de uma cobertura para facilitar a sua chegada à Europa [Central e Ocidental]”, admitia o linguista britânico Angus Fraser.
Fugir aos turcos ou lutar com eles
Na segunda metade do século XIII, principiou a queda do Império Bizantino e a ascensão do Otomano. No princípio do século XV, os turcos já tinham tomado boa parte do território. Sob aquela ocupação, a sorte dos ciganos variava. Nuns sítios, eram apreciados pelos seus ofícios. Noutros, apenas tolerados.
Muitos abriram caminho para a Macedónia e a Grécia continental e insular. Outros seguiram para norte, para onde hoje é a Bulgária, a Roménia, a Sérvia, a Croácia, a Bósnia-Herzegovina.
Eia! Eia! Toque-toque. Toque-toque.
Não partiram todos ao mesmo tempo. “A peste-negra atingiu o Oeste da Anatólia em 1347 e forçou uma migração geral pela Europa, que certamente incluiu ciganos, já que foram acusados de a ter introduzido”, escreveu Carmona. E não entraram todos na condição de fugitivos. Uns cruzaram fronteiras incorporando o Exército otomano. Serviam como ferreiros que produziam e consertavam armas, músicos militares e outras tropas auxiliares.
Séculos de escravidão no Leste
Nos principados de Valáquia e Moldávia, parte da actual Roménia, aconteceu o impensável: como apreciavam as artes e os ofícios dos ciganos e queriam impedi-los de se mudar, os poderosos decidiram escravizá-los.
A primeira referência remonta a 1385. O senhor da Valáquia, príncipe Dan I, aludiu à doação de 40 famílias ciganas feita no reinado do tio, Ladislau Voivoda, ao Mosteiro de Santo António.
Qualquer cigano livre era considerado propriedade da coroa. Estes “pagavam um tributo anual, mas não eram obrigados a permanecer num mesmo lugar”, explicava Fraser. “No Verão, viviam em tendas e no Inverno em buracos ou abrigos subterrâneos que cavavam nas florestas.” Já os escravizados pelo clero e pelos senhores não tinham qualquer controlo sobre as suas vidas.
Esse regime haveria de durar até 1856. Uma vez abolido, nenhuma política de integração se sucederia. Sem terras nem ferramentas, muitos seriam forçados à vida nómada. A maioria, permaneceria nas aldeias, mas muitos precipitar-se-iam para Ocidente.
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As peregrinações
Não há consenso sobre o início das peregrinações ciganas pela Europa. Fraser, por exemplo, aponta para um grupo que entrou no reino da Hungria em 1416. Certo é que, naquela época, “uma nova era teve início, com uma série de chegadas devidamente atestadas à Europa Central e Ocidental em que os ciganos apareceram como grupos organizados de peregrinos”.
Mulher cigana, à direita, em traje tradicional. Manuscrito de 1590, Biblioteca Nacional, Paris
Os documentos deixam perceber que, nos primeiros tempos, terão sido bem acolhidos mais ou menos por todo o lado, embora com estranheza. Na sociedade medieval, era dever de qualquer cristão ajudar os peregrinos na sua jornada de fé.
Os líderes apresentavam-se como nobres cujos ascendentes, no Pequeno Egipto, teriam abandonado a fé cristã e por isso lhes fora imposta como penitência andar pelo mundo sete anos. O imperador Segismundo concedeu salvos-condutos a alguns. Outros dirigentes fizeram o mesmo.
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Marginalização e repressão no Ocidente
Ainda não começara a Reforma protestante — com desprezo por superstições, peregrinações, mendicidades — e já no Sacro Império Romano-Germânico a sorte dos povos ciganos se alterava. Algumas cidades continuavam a acolhê-los, mas outras começaram a hostilizá-los.
Primeira chegada de ciganos a Berna (Suíça), no século XVI
A assembleia do Sacro Império acusou-os de espionagem (1497) e decidiu expulsá-los (1498). Não vendo efeito, renovou o decreto (1500), com um prazo: se não saíssem até à Páscoa, deixava de ser crime atacá-los. O imperador Carlos V actualizou várias vezes tais disposições. Até decidir que aqueles que não assentassem nem partissem “poderiam ser mandados para as galés por seis anos”; “aqueles que fossem apanhados a vadiar pela terceira vez podiam ser reduzidos à escravidão para sempre”.
Leis semelhantes surgiram em França, em Inglaterra e noutros países europeus. Seguiram-se mais de 300 anos de políticas de repressão, que forçaram os ciganos a andar de um lado para o outro.
Eia! Eia! Toque-toque. Toque-toque.
Várias lendas propagavam-se. Numa delas, os ciganos recusaram-se a auxiliar a Sagrada Família na fuga para o Egipto. Noutra, fabricaram os pregos que serviram para crucificar Cristo. Noutra ainda, roubaram o quarto prego, tornando mais dolorosa a crucificação. Também circulavam versões em que teriam ajudado Maria, José e Jesus.
Repouso na Fuga para o Egipto. Álvaro Nogueira, 1590, Museu Nacional Machado de Castro
Nas palavras de Fraser, “a história proporcionava às populações o mesmo tipo de pretexto justo para a intolerância que o argumento forjado pelo anti-semitismo, alegando a cumplicidade dos judeus na crucificação e no sacrifício de crianças cristãs na Páscoa”. A sua história havia de se cruzar. Naquele período e mais tarde — no Holocausto Cigano, o esforço feito por alemães nazis e seus colaboradores entre 1935 e 1944 para deter, colocar em campos de concentração e exterminar ciganos.
Expulsão, deportação e tentativa de extermínio na Península Ibérica
Terão entrado no Península Ibérica na primeira metade do século XV, pelos Pirenéus. Na segunda metade, chegou a Espanha uma nova vaga, via mar Mediterrâneo, de pessoas que já não se identificavam como egiptanas, egípcias, antes se declaravam grecianas, gregas, em fuga dos turcos.
A união dos reinos de Castela e Aragão, em 1479, não trouxe boas notícias para quem era diferente. Em 1499, sete anos após a expulsão dos judeus e três anos antes da conversão forçada dos muçulmanos, os reis católicos deram duas hipóteses aos ciganos: ou se tornavam sedentários e procuravam amo ou eram expulsos.
No reino de Portugal, a primeira lei repressiva surgiu em 1526. D. João III, Dona Catarina, D. Sebastião mandaram expulsá-los. Filipe I até concedeu executar os que não se sedentarizassem. D. João IV proibiu-os de usar os seus trajes, de falar a sua língua e de a ensinar, sobe pena de os homens serem condenados às galés e as mulheres ao degredo nas conquistas. D. Pedro II e D. João V e D. José também tentaram forçar a assimilação ou livrar-se dos ciganos.
Em Espanha chegou a haver um plano de extermínio. No dia 30 de Julho de 1749, no reinado de Fernando VI de Espanha, teve início o que ficou conhecido como “La Gran Redada”: foram detidas 10 mil a 12 mil pessoas ciganas. A ideia era separá-las: homens e maiores de sete anos para um lado, mulheres e menores de sete anos para outro; eles para trabalho forçado na marinha mercante, elas para fábricas-prisões. Resistiram como puderam. Houve greves de braços caídos, fugas, protestos. E acabou por ser aprovado um indulto.
Como escreveu Fraser, “se todas as leis anticiganos criadas tivessem sido aplicadas sem compromissos, mesmo que apenas durante alguns meses, os ciganos teriam sido erradicados da maior parte da Europa cristã muito antes dos meados do século XVI”. Valeu-lhes que “mesmo as mais vigorosas leis penais muitas vezes não eram levadas a efeito”.
Estima-se que existam hoje entre 10 e 12 milhões na Europa. Após tantos séculos de contacto, os ciganos pouco ou nada têm em comum com os seus antepassados indianos. Na síntese do linguista britânico cigano Ian Hancock, são um compósito; adquiriram a sua identidade no Ocidente, tomando por Ocidente a parte do Império Bizantino que falava grego. A antropóloga britânica Judith Okely fala em comunidades construídas a partir das margens da sociedade europeia que resistiam à transição do feudalismo para o capitalismo.