Guiomar Sousa segura uma bandeira dos povos ciganos.
Paulo Pimenta
Guiomar Sousa (n. 1981) está em luta para se manter no mercado de trabalho. Terminado o estágio integrado no curso que esteve a fazer no Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), tudo recomeça. Procurar anúncios, enviar candidaturas.
Trabalhou 12 anos nas feiras de Espinho e arredores. Nessa altura, se
lhe perguntassem, diria que não trabalhava. “Não via aquilo como um
trabalho.” Sempre vira os pais a fazer feiras. “Era o normal. Era a
vida. Na minha cabeça, trabalhar era por conta de outra pessoa ou
entidade.”
Já não confunde trabalho com emprego. No seu currículo, agora consta
que, entre 2000 e 2012, foi vendedora — fez gestão de stock, exposição
de produto, atendimento ao público, administração de fundo de maneio.
Apanhou “o fim” do modo de vida tradicional cigano. “Não estava
preparada.” Fora retirada da escola mal terminara o 4.º ano. Nem
questionara tal decisão. Na família, na Figueira da Foz, era o usual.
A queda do modo de vida tradicional levara muitos a recorrer ao
Rendimento Mínimo Garantido, actual Rendimento Social de Inserção
(RSI). Em 2012, tornou-se obrigatório os beneficiários desempregados
inscreverem-se nos centros de emprego. Apareceram muitos ciganos nos
serviços.
A Guiomar já antes fora proposto que fizesse um Curso de Educação e
Formação para Adultos que lhe desse equivalência ao 6.º ano. Quando
assumiu o estatuto de desempregada, era isso que tinha. Isso e os tais
12 anos de experiência.
Guiomar foi retirada da escola aos nove anos.
Paulo Pimenta
Mais de uma década volvida, um elevado número de ciganos continua
arredado do mercado de trabalho. Tendem a fazer “trabalhos pouco
qualificados, de natureza precária ou sazonal”, sintetiza a socióloga
Maria Manuela Mendes. Mas há uma crescente diversificação — serviço de
limpeza, construção civil, segurança, transporte individual e
remunerado de passageiros (TVDE), entre outros.
Persistem os baixos níveis de escolaridade. E esse será o primeiro obstáculo, mas não o único, mostra um estudo qualitativo, no âmbito do projecto EduCig que Maria Manuela Mendes coordenou, este ano publicado em livro.
Técnicos inquiridos nos centros de emprego (233) das áreas
metropolitanas de Lisboa e Porto culpam os desempregados — falta de
motivação (153), de hábitos de trabalho (134), de habilitações (129) —
e os empregadores — desconhecimento e receio (94) e mesmo
recusa/discriminação (84). Só depois mencionam a desadequação das
ofertas de formação (20) ou de emprego (45).
Deixando de fora os técnicos da área da formação, ouvindo apenas
alguns da área do emprego (37), mais de metade afirma que,
“frequentemente”, os empregadores rejeitam candidatos por serem
ciganos. Assumem que “não têm competências”, que “não são confiáveis”,
que são “desmotivados”, “preguiçosos” e “irresponsáveis”.
Com tantos entraves, o sucesso acaba por ser reduzido. E esse fica-se
muito pelos “trabalhos não qualificados ou de serviços pessoais,
segurança e vendas”.
Almerindo e Susana agarram a primeira oportunidade
Almerindo e Susana Salazar com o filho no Bairro da Biquinha,
Matosinhos. Paulo Pimenta
Almerindo Salazar (n. 1988) fez um curso profissional de técnico de
gás. “Andei à procura de emprego. Estava inscrito no centro de
emprego. Quando havia propostas, ia lá, mas chegava lá e não tinham
nada.”
Fez várias formações do IEFP. Quando se lhe pergunta se eram úteis,
responde: “Não. Eu ia lá só por causa da lei, porque, se não fosse,
passado um mês cortavam-me o RSI. Tínhamos de ir. Éramos obrigados.”
Um dia, abriu-se uma porta. Andara um ano e meio a tirar um curso de
manutenção industrial. Seguira-se um estágio curricular.
Perguntaram-lhe se queria fazer um estágio profissional, e ele
respondeu que sim, com certeza. Decorridos sete anos, continua a
trabalhar. Pertence aos quadros da Sociedade de Transportes Colectivos
do Porto (STCP). “Faço mecânica nos pesados de passageiros.”
Quando convidaram Almerindo, ele nem queria acreditar. “Que bom ter um
trabalho, um salário. Que bom não estar sempre a ser chamado para
formações ou andar à procura de emprego.” E que bom poder pagar
contas.
Fora mais longe do que o comum entre ciganos da sua geração. “O 'vai
hoje' e 'amanhã não vai' com a minha mãe não dava. Eu e os meus irmãos
tivemos de andar sempre ali, direitinhos.” Concluíra o 6.º ano.
Através do IEFP, fizera um curso de gás, que lhe dera equivalência ao
9.º. E outro de manutenção industrial, que lhe dera equivalência ao
12.º ano.
A mulher, Susana Salazar (n. 1991), começou um pouco atrás. Abandonara
a escola depois do 4.º ano. Regressou depois de se casar. “Primeiro,
fiz um curso do 5.º ao 6.º. Depois, fiz um curso de restauração que
dava do 7.º ao 9.º. Foi aí que consegui o meu primeiro emprego.”
No início, Susana trabalhava a tempo parcial. “O senhor pôs-me a
trabalhar à sexta, ao sábado e ao domingo. Estava a chegar o Natal. No
mês de Dezembro, estive lá de manhã à noite. Então ele perguntou-me se
podia estar à noite, e eu disse que sim. Foi o primeiro emprego que
tive.”
Almerindo com a caixa de ferramentas.Paulo Pimenta
Um falatório no Bairro da Biquinha, na fronteira de Matosinhos com o Porto. Trabalhar à noite? Uma mulher, sozinha, sem estar acompanhada pelo marido ou algum familiar? Susana e Almerindo davam conta, mas não faziam caso. “Eu e ela temos uma vida”, diz ele. "Nós temos todos a nossa vida. Quem manda na nossa vida somos nós, eu e ela.” Não fizeram um corte com as tradições ciganas. “Tenho orgulho de ser aquilo que sou”, diz Susana. “Gosto dos casamentos. Gosto da união. Há um problema, os ciganos estão unidos.” Mas faz as suas escolhas.
Susana só parou de trabalhar quando engravidou. Havia um risco. Sofreu
um aborto. Tornou a engravidar. No ano passado, regressou ao mercado
de trabalho. “Trabalhei um ano nas limpezas. Acabou o contrato, agora
estou à espera. A minha mãe está doente e não consegue ficar com o meu
filho.” No início do próximo ano lectivo, entrará no pré-escolar. “Ele
tem três anos. Vou ver se arranjo trabalho na parte da manhã.”
Conciliação entre família e formação/emprego
Família Salazar entre prédios no Bairro da Biquinha.
Paulo Pimenta
Foi a dificuldade de conciliação que no início travou Guiomar. Tem um
rapaz (n. 2001) e uma rapariga (n. 2009). A rapariga era bebé quando
ela teve a primeira oportunidade de trabalhar por conta de outrem.
Havia em Espinho um Escolhas, programa governamental cuja “missão é
promover a inclusão social de crianças e jovens de contextos
socioeconómicos vulneráveis”. O rapaz frequentava-o. E Guiomar,
também. “Sentia-me bem. Gostava das actividades, das acções de
sensibilização, das conversas com as técnicas.” “Isto era bom para
mim”, pensava.
Quando a coordenadora a convidou para ocupar o lugar de dinamizadora
comunitária, foi de Espinho à Figueira da Foz pedir um conselho ao
pai. “E o que é que fazes aos meninos?”, perguntou ele. “Havia muito
esse receio de deixar de cuidar dos filhos.”
Não aceitou, mas quando o convite se repetiu, em 2014, disse que sim.
Precisava de ganhar dinheiro. E percebia que o trabalho não punha em
causa o seu papel de esposa e mãe. “Era no bairro. Eu ia almoçar a
casa. Dava para deixar os meus filhos na escola e ir buscá-los.” Os
familiares aceitaram. Só não gostavam que tivesse de se deslocar e de
passar uma ou duas noites fora. “Ainda há aquela ideia de que a mulher
cigana não pode estar fora de casa, não pode trabalhar fora da
família. As pessoas mais velhas ainda levantam muitos obstáculos.”
No Escolhas, os dinamizadores não se podiam repetir de geração para
geração. Ao fim de um ano e meio, Guiomar estava desempregada. E a
encarar anúncios de emprego. “Que escolaridade tem? Onde é que já
trabalhou? Em que entidades? Eu não tinha como responder. Sentia-me
incompleta. Comecei a procurar formações.”
Aproveitou o subsídio de desemprego para fazer um Processo de
Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), que
lhe deu equivalência ao 9.º ano. Através de medidas do IEFP, trabalhou
seis meses como assistente operacional na Escola Básica da Anta. E
outros seis como auxiliar de serviços gerais na Câmara de Espinho.
Com o divórcio veio o regresso à Figueira da Foz. Foi então que
Guiomar reparou que havia quem vivesse na clandestinidade étnica. “Há
pessoas ciganas a trabalhar em lojas, supermercados, fábricas. Quem se
cruza com elas não sabe que são ciganas.” Preferem passar
despercebidas.
Contou-lhe uma amiga, supervisora numa loja, que quando ali começou a
trabalhar a formadora recomendou-lhe: “Se perceberes que a pessoa é
cigana, não te dirijas a ela.” Calou-se. “Teve de demonstrar primeiro
a capacidade dela. Não deixou logo que soubessem que era cigana para
não a julgarem por todos os rótulos associados à palavra ‘cigano'.”
“Temos de trabalhar muito esta ideia de que somos um colectivo”,
realça. “Somos um colectivo enquanto comunidade, mas depois não somos
um colectivo no que conta a acções, comportamentos, vivências.”
Monolo prefere manter clandestinidade étnica
Com medo da discriminação, há quem não queria revelar a etnia.
Paulo Pimenta
Manolo X (n. 2000) pede para não ser identificado/fotografado. Teme
que a exposição o prejudique.
Saiu da escola com o 9.º ano. Contava 17 anos e queria trabalhar,
fazer a sua vida. Pediu ajuda a uma técnica que trabalha no seu bairro
para fazer o currículo, escrever a carta de apresentação, procurar
anúncios.
Que alegria quando foi seleccionado para trabalhar numa empresa de
limpeza de vidros. “Fui bem apresentado à entrevista. A senhora não me
deu como cigano.” No primeiro dia, esforçou-se para aprender o novo
ofício. Voltou para casa convencido de que correra tudo bem. No dia
seguinte, a patroa telefonou-lhe a dizer que já não precisava dos seus
serviços, que dava conta do recado. “Por muito que se tente esconder,
há sempre aquele sotaque diferente.”
Não cruzou os braços. Esteve um ano a trabalhar numa empresa de
lavagem de automóveis. Começou a fazer entregas de refeições através
de uma plataforma digital. Fez o curso de operador de TVDE. “Isso traz
uma grande facilidade para as pessoas de etnia cigana. Não há patrão.”
Não puxa conversa com os clientes. Não vá o sotaque traí-lo. Diz
bom-dia, boa-tarde, boa-noite, muito obrigado. “Mesmo nos TVDE,
sentimos que há muito preconceito.” A qualquer momento, pode vir ao de
cima.
Certo dia, entraram uns clientes no seu carro “a falar mal da etnia
cigana”. Manolo ouviu calado até um deles dizer que os ciganos “são
todos uma escumalha”. “Já é bastante”, pensou. Tinha de dizer alguma
coisa. “Perguntei: ‘Posso interromper?' Ele: ‘Diga, diga.’ E eu: ‘Por
um, não podem pagar todos.’ E ele: ‘Nunca vi um cigano a trabalhar.’ E
eu: ‘Peço imensa desculpa, mas está dentro do carro de um cigano.’”
Silêncio até ao fim da viagem. “A maneira de ele fechar a porta. Quase
levava a porta do carro. Eu podia ter falado, mas para quê? Se
houvesse problema, de quem era a culpa? A culpa é do cigano. Então
abri o vidro e disse: ‘Continuação de boa tarde.’ Ele reportou à Uber:
pessoa malcomportada, rádio desagradável, carro sujo, tudo e mais
alguma coisa. Eu reportei à Uber o que tinha acontecido, e eles
compreenderam.”
António já viu como o olhar dos outros é relativo
António Joaquim trabalha nos serviços de manutenção da Câmara de
Belmonte. Paulo Pimenta
Um dia, António Joaquim (n. 1973) teve uma chatice no emprego. O chefe
pediu-lhe que distribuísse o plano de trabalho. Passou por um colega e
informou: “Olha, o chefe disse para fazeres isto assim e assim.” O
outro irritou-se: “Não preciso que um cigano me dê ordens!”
Não gostou de ouvir aquilo. Era como se lhe estivesse a dizer que ele,
por ser cigano, valia menos do que os colegas que não o são. Que tinha
a sua identidade étnica que ver com o seu valor? A identidade étnica
nem é estática.
António nasceu em França. Os pais tinham ido a salto na década de
1960, trabalhado numa quinta e tido outros ofícios. Ouvia-os falar nos
tempos em que “andavam de carroça, a dormir nos olivais”. Se ser
cigano era aquilo, não queria ser cigano. “Em França, eu não era
cigano; em França, eu era português. Só sei ser cigano desde que vim
para cá.”
Contava 21 anos quando se mudou para Portugal. Sofrera um desgosto
amoroso. Estava sem trabalho. A mãe enviuvara. Juntou-se a ela em
Belmonte e aí, sim, conheceu “a vida de cigano”. Casou-se com uma
prima. Começou a fazer vindimas em Espanha e feiras em Portugal.
Na região centro, o negócio não ia melhor do que no Norte, no Alentejo
ou no Algarve. Trabalhando com a mulher, só havia um ganho. Procurou
alternativa. Trabalhou numa empresa de frios, numa fábrica, numa
oficina, noutra fábrica, voltou às feiras. E deu por ele a recorrer ao
RSI.
Falou com o presidente da Câmara de Belmonte. O autarca encorajou-o.
Havia um programa específico para promover a empregabilidade de
beneficiários de RSI, o Contrato-Emprego Inserção +. Podia assinar um
a fazer trabalho socialmente necessário.
António nasceu em França e veio para Portugal com 21 anos.
Paulo Pimenta
Antes dos trabalhos de manutenção, António trabalhou em fábricas,
oficinas e feiras. Paulo Pimenta
Era o que António queria ouvir. “Comecei a trabalhar. Gostaram muito
de mim. Não me deixaram sair.” Ao fim de 12 meses, assinou outro
Contrato-Emprego Inserção +. “Como não havia vagas no quadro,
trabalhei para uma empresa, mas estava colocado na câmara. Quando
abriu concurso público, concorri, entrei na câmara.”
Vai no quinto ano de trabalho no serviço de manutenção. “Eu gosto
disto porque não estou sempre a fazer o mesmo serviço, estou sempre a
mudar. Transporto coisas. Ajudo a meter paralelo nas estradas. Tapamos
os buracos com alcatrão. Andamos na poda das árvores.”
Ser cigano influencia a forma como os colegas se relacionam consigo?
Tirando o episódio já referido, acha que não. “Os colegas brincam
comigo, eu brinco com eles, pronto, o normal, mas lá fora ainda há
algumas pessoas…” Pode ser subtil, o racismo, a ciganofobia, mas está
lá. “Nós temos um serviço de recolhas. Temos de ir à casa das pessoas,
e algumas ficam desconfiadas.” Nesses momentos, diz a si próprio:
“Estou cá para trabalhar. Sou uma pessoa séria.”
A mediação nos centros de emprego
Muitos trabalham nas feiras, mas dizem que o negócio está fraco.
Paulo Pimenta
Os centros de emprego assumem um papel fulcral enquanto intermediários
entre desempregados e empregadores. Que sabem os técnicos sobre a
cultura cigana? Como lidam com os desempregados destas comunidades?
A maior parte dos técnicos inquiridos nos centros de emprego de Lisboa
e Porto (61%) tem conhecimentos gerais sobre diversidade cultural.
Poucos (25%) sobre esta minoria específica, mas grande parte manifesta
vontade de frequentar formação sobre história e cultura cigana. O
recurso a mediadores interculturais é residual. Este novo estudo
coordenado por Maria Manuela Mendes indicia, todavia, que entre os
técnicos dos centros de emprego e dos centros a sua relevância é
“consensual”.
Guiomar participou numa experiência dessas em 2018, na Figueira da
Foz. Como mediadora intercultural do IEFP, ia “acompanhar ciganos que
estivessem a frequentar cursos, sensibilizá-los para a assiduidade,
fazer a ponte com empresas, apoiar a integração em estágios”.
Estava entusiasmada com aquela possibilidade de mudar a sua vida e a
de outras pessoas. “Era como se estivéssemos a construir um caminho de
confiança para receber pessoas ciganas no mercado de trabalho.”
Ao que se lê no já referido estudo, como tendem a apresentar
escolaridade baixa, muitas vezes ao nível do 1.º ciclo, estes
desempregados manifestam maior interesse em fazer formação básica e
formação modelar certificada. Costuma ser elevado o absentismo e fraco
o resultado.
Naquela altura, decorriam vários cursos — “empregada/o de andar,
empregado/a de bar, costura, logística de armazém e outros”. “Algumas
pessoas acabaram por ir a estágio e uma delas ficou a trabalhar numa
grande superfície comercial. Chegámos a acompanhar outras pessoas a
entrevistas de estágio, mas o projecto acabou.”
Muitos não passam da formação. “Tem aquela questão das jovens
solteiras. Elas vão fazer a formação e muitas vezes é tranquilo,
porque vão acompanhadas por familiares. Chegando a altura de fazer o
estágio, não há essa possibilidade, têm de ser autónomas. E
retraem-se."
A concentração em bairros sociais e acampamentos favorece a pressão
social. E é preciso quebrar a sua força, fazer perceber “que a mulher
cigana pode estudar e trabalhar e que o mundo lá fora não é um 'bicho
de sete cabeças'”. “Podemos conviver e isso não nos impede de ter a
nossa identidade e de respeitar a nossa cultura.”
Quantas vezes amigas suas se queixam da pressão social, dos
comentários desagradáveis? Guiomar diz-lhes: “Vai trabalhar de
consciência tranquila. Vais trabalhar para pagar as tuas contas. Estás
a preparar um futuro para os teus filhos. Há sempre alguém que julga.”
Tem pena de que a experiência se tenha esfumado. “Aqueles seis meses
foram para as pessoas me conhecerem, para saberem que podiam contar
comigo. Ainda hoje me perguntam por algum tipo de formação. Mandam
mensagem, ligam, falam comigo se me virem na rua. A ligação foi
feita.”
Sandrina cresceu entre dois mundos e isso é útil no seu trabalho
Sandrina Lamas (à esquerda) e Yuriy Raychev (à direita) vão de casa em
casa informar imigrantes búlgaros .
Paulo Pimenta
O que facilita o acesso ao emprego, para lá das habilitações
académicas e da experiência profissional? Um estudo qualitativo feito
há uns anos pela socióloga Olga Magano aponta para “contacto com
pessoas não-ciganas, pertença a circuitos diversificados, relações
conjugais mistas”.
“A abertura face a outras pessoas e a outros grupos e a outros
contextos pode fazer a diferença”, corrobora Maria Manuela Mendes.
“Terão mais oportunidades de contactar outras realidades, outras
perspectivas.”
Sandrina Lamas (n. 1993) trabalha com Yuriy Raychev (n. 1998) no
projecto de mediação e intervenção comunitária Alfândega Abraça,
promovido pela Liga dos Amigos do Centro de Saúde de Alfândega da Fé.
Ela é portuguesa, filha de mãe cigana e pai não-cigano. Ele é búlgaro,
filho de mãe cigana e pai não-cigano. E essa pertença dupla é uma
mais-valia para o trabalho que procuram desenvolver no município.
Diz Sandrina que ali, naquele pedaço de Nordeste Transmontano, a
população portuguesa cigana “está bem integrada”. “Não temos de andar
sempre atrás das pessoas: ‘Ah, tens de ir à escola ou ao centro de
saúde.’”
Desde a década de 1960, assiste-se a uma debandada das aldeias para a
vila, da vila para as cidades — de Portugal ou de outros países. A
mão-de-obra dos portugueses ciganos tornou-se um recurso, por vezes o
único. Há pouco mais de uma década começaram a aparecer búlgaros
ciganos.
A comunidade búlgara cigana “tem mais dificuldades”. A equipa informa,
sensibiliza, faz a mediação com os vários serviços públicos. Dinamiza
o recreio de uma escola com pré-escolar e 1.º ciclo para facilitar a
integração das crianças. Faltando alguma, entra em contacto com a
família.
“Quando era pequena, Sandrina não queria que a mãe lhe entrançasse o
cabelo. Achava que as tranças a faziam parecer mais cigana. “Não vou
dizer que sofri muito, mas algumas crianças eram um bocado
preconceituosas.”
Sandrina é portuguesa, filha de mãe cigana e pai não-cigano. Yuriy é
búlgaro, filho de mãe cigana e pai não-cigano.
Paulo Pimenta
Paisagem transmontana no distrito de Bragança.
Paulo Pimenta
Ao estudar Educação Social no Instituto Politécnico de Bragança, o
desconforto desapareceu. “Acho que este curso me fez muito bem também.
Fez com que eu lutasse contra as minhas frustrações, porque eu sempre
tive algumas frustrações. Não gostava de ser cigana.”
Até ao último ano, só as colegas mais próximas sabiam. Fez a revelação
numa aula. “A professora estava a dizer que os ciganos não queriam
estudar e não sei quê. Nós começámos a rir. A professora parou a aula.
Quis saber o motivo [da risota]. Então eu disse: ‘Eu sou cigana.’ E
pronto, ela deu-me os parabéns e pediu-me desculpa pela maneira como
falou.”
O facto de ter mãe cigana nunca pôs em causa o seu percurso escolar.
Pelo contrário. Por vontade da mãe, Sandrina já estava a fazer um
doutoramento. “Está sempre a dizer: ‘Eu quero que tu sejas mais. Eu
quero que tu estudes.’ A minha avó não a deixou estudar, então ela
sempre quis que eu e o meu irmão estudássemos. O meu irmão tirou um
curso de cozinha. Trabalha num hotel spa aqui em Alfândega da Fé.”
Agora, Sandrina está confortável com a sua identidade. “Antes, se me
perguntassem, eu não queria dizer, tinha vergonha. Agora, não me
importo. Agora, se me perguntarem, eu digo. Vejo que é bom ter os dois
lados.”
Gedeão Sá quis mostrar que os ciganos não são todos iguais
Gedeão Sá estudou na Escola Profissional de Imagem, em Lisboa.
Paulo Pimenta
À medida que aumenta a possibilidade de encontro entre ciganos e
não-ciganos, crescem as probabilidades de miscigenação. Há um lado que
Gedeão Sá (n. 2002) pode escolher esconder ou revelar e outro que não,
que está escancarado na cor da pele. “Eu tenho uma grande
peculiaridade. O meu pai é africano e a minha mãe era cigana.”
Ninguém deu pelo seu lado cigano quando entrou na Escola Profissional
de Imagem, em Lisboa. Só no momento de discutir a prova de aptidão
profissional achou que fazia sentido falar na sua identidade étnica.
Ainda agora se ri ao recordar tal momento. “'Então, Gedeão, já
decidiste o que vais fazer?’ A minha turma toda lá. ‘Vou fazer um documentário, professor.’ E ele: ‘Sobre quê?’ E eu: ‘Sobre as comunidades ciganas
e a integração no mercado de trabalho.’ E ele: 'Sabes que para fazer
isso tens de estar com eles.' E eu: ‘Tá fixe. A minha mãe é cigana.’"
“Aquilo foi uma bomba”, diz. Os colegas interpelaram-no. “Tu és
cigano, como é que é possível? Eu dei-me contigo este tempo todo. Tu
não pareces. Tu estás aqui a estudar.” E vieram as perguntas. “Olha
lá, já és casado?” “Não, estou a estudar.” “Olha, tu andas de
carroça?” “Não, eu apanho o barco.”
Gedeão decidiu fazer um documentário sobre comunidades ciganas.
Paulo Pimenta
Quando revelou aos colegas que era cigano, eles ficaram
surpreendidos. Paulo Pimenta
Sentiu a força do estereótipo, que faz com que um cigano que estuda ou
trabalha não seja visto como cigano. E isso ainda deu mais sentido ao
desejo de mostrar que não são todos iguais. Ouviu a avó, uma tia e um
primo como representantes de uma versão tradicional, fechada. E três
amigos, como exemplos de uma versão moderna, aberta.
Embora só tivesse o 4.º ano, a mãe sempre o incentivara a estudar. “Eu
odiava a escola. Era o acordar cedo. Era o estar sentado. Até gozava
com a minha mãe: 'Vou com o meu primo vender meias.’ E ela: ‘Tu não
vais fazer isso. Tens de te esforçar.’”
Gedeão queria casar-se cedo e continuar a viver em Almada. E delineou
um plano: “Não gosto de estudar. Vou fazer algo mais prático. Gosto de
vídeo. Tiro um curso profissional, vou trabalhar, faço o estágio,
estou na casa dos pais, junto algum dinheiro, caso-me com a Andreia,
alugamos uma casa, organizamos a nossa vida.” E assim foi.
Estagiou na Sport TV. “Estive lá a fazer câmara. Fui para os jogos de
hóquei. Era divertido, mas a recibos verdes. Queria uma coisa mais
segura. Lancei currículos.” Entrou numa empresa que presta serviços à
RTP. “Fiquei lá um ano. A minha cena é mais câmara, e eu estava a
fazer grafismo. Falei com os recursos humanos.” Neste momento,
encontra-se em Cracóvia, na Polónia, a prestar apoio técnico a uma
equipa que está a cobrir os Jogos Europeus. Nunca tinha andado de
avião. Voltando, não sabe o que fará, mas está confiante.
A precariedade generalizada
“Talvez consiga trabalhar na restauração”, diz Guiomar procurando ser
optimista. Paulo Pimenta
Guiomar está prestes a lançar-se na tarefa de procurar anúncios,
mandar candidaturas. No seu currículo consta agora o curso de Mediação
intercultural — Educação e Formação de Adultos/Técnicas de Acção
Educativa. E o 12.º ano — RVCC nível três.
“Neste momento, no país, é difícil haver uma continuidade, uma
carreira”, comenta. “Há muito trabalho, mas é trabalho precário. E há
muito trabalho que é sazonal. E isso afecta pessoas mais jovens e
pessoas um pouco mais velhas.”
Mantém algum optimismo. “Talvez consiga trabalhar na restauração,
porque aqui, nesta altura, há muita oferta de emprego nessa área.” Mas
teme pelo futuro. “E quando acabar a época balnear?”
O preço das rendas alcança valores incomportáveis para uma mulher de
42 anos, divorciada, com uma filha, em luta para se manter no mercado
de trabalho. “Estou numa casa emprestada por um familiar. Quando o meu
familiar precisar da casa, não sei bem o que vou fazer. A trabalhar
pelo ordenado mínimo é difícil pagar uma renda.”
Não se sente a lutar sozinha. Faz parte do activismo cigano. Integra a
Ribalta Ambição – Associação para a Igualdade de Género das
Comunidades Ciganas. “Nós temos de ter camaradas, colegas, amigos e de
trabalhar todos em conjunto por um bem maior. Também foi por isso que
quis fazer este curso.” Ganhou mais ferramentas para mudar a sua vida
e a de outros.
Portugueses ciganos – uma história com cinco séculos
Nesta série especial multimédia de cinco capítulos, começámos por procurar vestígios da longa viagem feita por estes povos, desde a Índia até Portugal. Revisitámos a sucessão de leis repressivas de que os ciganos foram alvo em território nacional e damos conta de um esforço novo para resgatar esse e outros aspectos da sua história. Procurámos perceber o que mudou desde o 25 de Abril de 1974. Ouvimos contar o quanto custa sair da margem, ultrapassar a ciganofobia e conquistar um emprego. E verificámos que ainda há quem seja forçado a levar uma vida nómada.
Referências bibliográficas e audiovisuais
ALMEIDA, Sancha, A Vida para além das Feiras: a importância das medidas de formação profissional do povo cigano, Universidade de Coimbra, 2017.
MAGANO, Olga, Tracejar vidas 'normais'. Estudo Qualitativo sobre a Integração dos Ciganos em Portugal, Mundos Sociais, 2014.
MENDES, Maria Manuela (coord.), "Ciganos/roma e educação – investigação colaborativa e práticas de coprodução de conhecimento", Mundos Sociais, 2023.
PEREIRA, Isabel Teresa Ferreira, “Ninguém dá trabalho aos ciganos!” Estudo qualitativo sobre a (des)integração dos ciganos no mercado formal de emprego,Universidade Aberta, 2016.