Peter Brötzmann e os Black Bombaim: uma história de free jazz e algum rum
Tojó Rodrigues, baixista da banda de Barcelos, lembra os dias em que o grupo trabalhou com o falecido saxofonista alemão, importante figura do free jazz que se tornou um amigo dos músicos portugueses.
É com carinho que Tojó Rodrigues, baixista dos barcelenses Black Bombaim, recorda os episódios vividos com Peter Brötzmann, importante saxofonista alemão do free jazz europeu com quem a banda gravou um álbum em 2016, e que morreu nesta quinta-feira, aos 82 anos. Ao PÚBLICO, lembra que a banda de stoner rock psicadélico uniu forças com o germânico na sequência de um convite feito pelo festival Rescaldo, em Lisboa. “Ficámos apavorados. Tocar com aquela instituição…”
Tojó não conhecia em grande detalhe a obra do alemão, mas já sabia que era um “personagem forte”. Foi escutar Machine Gun pela primeira vez — e a experiência foi arrebatadora. “Se já estava apavorado, naquele momento fiquei muito mais. O título do álbum enquadra-se, aquilo é uma metralhadora a disparar em todas as direcções.”
Recorda o inevitável “choque musical” que se deu no primeiro ensaio. O grupo português e o saxofonista alemão vinham de universos diferentes. Ele estava habituado a “tocar sem planos”, a improvisar; eles não tinham o mesmo “à-vontade”. Ele tanto se atirava ao caos como a uma espécie de silêncio inquietante, ou premonitório; eles dão menos espaço a esses saltos em termos de dinâmica. “Disse-nos: ‘Eu toco alto, mas porra, vocês…’”, conta Tojó entre risos.
Os músicos acabaram por encontrar um entendimento mútuo — num espaço de tempo curto. Tojó fala em apenas quatro dias, com ensaio no primeiro, concerto na Culturgest (Lisboa) no segundo, concerto no Hard Club (Porto) no terceiro, e gravação do simplesmente intitulado Black Bombaim & Peter Brötzmann no último.
Chegados ao estúdio, os Black Bombaim já haviam ultrapassado os constrangimentos iniciais, já tinham percebido como podiam coexistir com Brötzmann. O dia de trabalho foi produtivo — se não marcado por um encontro com uma tentação antiga.
Tojó conta a história: “Nós gostamos de beber. Nos primeiros dias, o Brötzmann não nos acompanhou. Pensámos: ‘Tudo certo, está velhinho.’ Na verdade, conforme só viemos a descobrir mais tarde, era mais do que isso: ele era um ex-alcoólico. No dia do concerto no Porto, depois do soundcheck, vira-se para nós e diz: ‘Já bebi a minha meia de leite… Gosto muito de rum, não se arranja?’” Pediu Havana 7, o seu preferido, e bebeu um gole.
No dia seguinte, já no estúdio, perguntou pela garrafa. “A meio da sessão, tivemos de ir buscar outra — e de repente já estávamos todos mais para lá do que para cá”, narra o baixista. “A dada altura, estávamos a ouvir as gravações e o Brötzmann disse [Tojó engrossa a voz]: ‘Rapazes, podemos fazer melhor.’ Repetimos tudo, e ainda bem, porque de facto ficou mesmo melhor.”
Gravado o álbum, os Black Bombaim meteram o alemão num comboio rumo a Lisboa. “Estamos bem da vida, a pensar que não se passa nada, até que o Travassos [programador do Rescaldo, conhecido apenas por este nome] telefona. Pergunta-nos: ‘O que é que fizeram ao homem?’” Tojó ri-se. “A ressaca bateu-lhe no caminho e estava impossível, resmungão. Estava o Brötzmann de que as pessoas ouvem falar.”
“Connosco, era um querido.” Tojó conta que Brötzmann foi mantendo viva a amizade com a banda ao longo do tempo. O germânico era “pouco falador”, mas de vez em quando mandava um e-mail aos portugueses. “Perguntava se estava tudo bem connosco; dizia-nos que estava ainda a tocar, mas que estava a começar a dedicar-se mais à jardinagem… Era um fofo.”
Depois do disco colaborativo, lançado em 2016 (uma edição Shhpuma/Lovers & Lollypops), surgiram alguns convites para os Black Bombaim darem mais concertos com o saxofonista alemão. Aqui em Portugal, diz Tojó, houve actuações no Musicbox e no Passos Manuel (Lisboa e Porto, respectivamente). Houve também visitas a Polónia, Países Baixos e Inglaterra.
O baixista lembra-se de uma actuação num festival polaco em que “metade da sala foi embora”. Era um festival para um público habituado a um jazz mais “convencional”, diz.
Comenta que Brötzmann era de estatura baixa, mas “parecia grande”. “Era aquela maneira de estar…”, diz. “E, musicalmente, era também aquela expectativa: quando pega no saxofone, vai tudo mudar. A partir daí, esquece.”
E quanto ao rum? “Apanhámos o gosto a Havana 7, de vez em quando bebemos nos concertos.”