Calor: qual é a temperatura máxima que um corpo humano aguenta?
A tolerância humana ao calor extremo não depende só dos valores do termómetro, mas também da humidade relativa. É por isso que os cientistas usam como medida a temperatura de bulbo húmido.
Não é possível indicar um ponto exacto do termómetro a partir do qual a sobrevivência humana está em risco. Isto porque, quando falamos da tolerância dos seres humanos ao calor, não é apenas a temperatura do ar que importa – a humidade é também uma peça-chave dessa equação. Além disso, a resistência a dias demasiado quentes pode variar consoante a idade, o estado de saúde e as características de cada pessoa.
É por isso que, quando questionamos em que momento uma onda de calor poderá ser insuportável para os humanos, muitas vezes os cientistas referem-se a um tipo de medida diferente: a temperatura de bulbo húmido. Este padrão consiste no que o nome indica: a medição do calor é feita com o bulbo (a ponta do termómetro) molhado. O valor obtido estima o calor que sentimos quando a nossa pele está suada e exposta à passagem do ar.
O corpo humano foi desenhado pela evolução para operar num dado intervalo térmico. Se a temperatura sobe rapidamente, dispomos da transpiração como um mecanismo natural de regulação do calor corporal. A produção de suor é um processo biológico que permite o arrefecimento dos tecidos. O problema é que esta função termorreguladora só funciona até um certo ponto. Agora, com os temperaturas do planeta a disparar, as vagas de calor tendem a ser mais frequentes ou intensas, podendo causar mais mortes por hipertermia.
Em tempos de crise climática, a comunidade científica envida esforços para compreender quais são os limites humanos na adaptação às temperaturas externas. Um estudo científico de 2010 indicava que a temperatura de bulbo húmido de 35 graus Celsius seria, em termos teóricos, o limite para a adaptabilidade humana ao calor extremo. Uma investigação mais recente sugere, contudo, que a capacidade de adaptação dos nossos organismos pode ser bem menor.
“Embora esse limite teórico seja baseado em princípios fisiológicos, ele não foi testado usando dados empíricos. O nosso estudo examinou a temperatura crítica de bulbo húmido na qual o stress térmico se torna incompensável em adultos jovens e saudáveis que executam tarefas em taxas metabólicas modestas, imitando actividades básicas da vida diária”, lê-se no artigo publicado, em 2022, na revista científica Journal of applied physiology.
Afinal, não há um valor exacto
Investigadores da Universidade do Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, tentaram avaliar em laboratório como homens e mulheres saudáveis reagiriam em ambientes húmidos com temperaturas do ar entre 36 e 40 graus Celsius. Foi pedido aos participantes que engolissem uma minúscula pílula de telemetria, um dispositivo capaz de monitorizar internamente a temperatura corporal.
Enquanto as pessoas desempenhavam tarefas simples, que não exigem grande esforço físico, como cozinhar ou comer, os cientistas foram aumentando progressivamente a temperatura nas salas onde se encontravam os participantes. Os dados fisiológicos obtidos durante este teste mostraram que o “stress térmico incompensável em ambientes húmidos” ocorre em adultos jovens e saudáveis em temperaturas de bulbo húmido muito inferiores a 35 graus Celsius.
“Achei interessante, depois de anos a usar um valor específico como o limite para o stress térmico (a temperatura de bulbo húmido de 35 graus), termos descoberto que esse limite é, de facto, significativamente menor, mesmo numa coorte jovem e saudável. E termos demonstrado ainda que esse limite não era apenas um número, mas variava com combinações de temperatura do ar e humidade relativa (o que faz todo sentido, dados os princípios básicos da termodinâmica)”, explica ao PÚBLICO Daniel J. Vecellio, primeiro autor do estudo.
As conclusões do estudo vêm tornar as decisões políticas na área da saúde pública mais complexas. “Toda a gente quer um número para poder basear todas as decisões, mas tanto a variabilidade climática como a fisiológica não permitem que seja assim tão simples, algo que tanto cientistas como decisores políticos precisam entender e comunicar bem”, frisa o investigador da Universidade do Estado da Pensilvânia numa resposta enviada por e-mail.
De acordo com o estudo de Daniel Vecellio – o primeiro a usar dados empíricos para avaliar a tolerância humana a temperaturas extremas –, os limites de adaptabilidade do organismo humano ao calor estariam algures à volta dos 31 graus Celsius (temperatura de bulbo húmido). Numa situação real, esta medida equivaleria a estarmos num ambiente com a temperatura do ar de 38 graus Celsius e 60% de humidade relativa do ar, por exemplo.
“Quando o corpo superaquece, o coração precisa de trabalhar mais para bombear o fluxo sanguíneo para a pele, por forma a dissipar o calor. Quando estamos a suar, isso também diminui os fluidos corporais. Num caso mais grave, a exposição prolongada pode resultar em insolação, um problema com risco de vida que requer arrefecimento imediato, e rápido, além de tratamento médico”, escrevem os Vecellio e colegas num artigo publicado na plataforma The Conversation.
Uma ameaça quase inevitável
Pode parecer longínqua a ideia de vivermos com regularidade num ambiente húmido, onde a temperatura do ar é de 38 graus Celsius, por exemplo. Mas os cenários desenhados pelos cientistas mostram que cada vez mais países poderão estar expostos a combinações perigosas de temperatura e humidade. Quanto mais longe estivermos de cumprir o Acordo de Paris, maior a probabilidade de testemunharmos contextos climáticos inóspitos para os seres humanos.
“Uma ameaça crescente à vida humana causada pelo excesso de calor agora parece quase inevitável, mas será muito agravada se os gases de efeito de estufa não forem reduzidos consideravelmente”, lê-se num estudo, publicado em 2017 na revista científica Nature Climate Change, cujo primeiro autor é o investigador colombiano Camilo Mora.
No artigo científico, a equipa procurava não só quantificar o risco global de mortalidade relacionada ao calor, mas também compreender melhor quais combinações de calor e humanidade podem ser fatais. Para o efeito, os autores analisaram centenas de episódios de calor extremo relatados em artigos publicados entre 1980 e 2014. Ao todo, contabilizaram 783 casos de excesso de mortalidade humana associados ao calor em 164 cidades em 36 países.
“Com base nas condições climáticas desses eventos de calor letal, identificamos um limite global além do qual a temperatura média diária do ar na superfície e a humidade relativa se tornam mortais. Cerca de 30% da população mundial está actualmente exposta a condições climáticas que excedem esse limite mortal por pelo menos 20 dias por ano. Até 2100, estima-se que este valor aumente para aproximadamente 48% num cenário de reduções drásticas de emissões de gases de efeito estufa e 74% num cenário de emissões crescentes”, concluem os cientistas no artigo.
A Europa figura entre os vastos territórios em risco. O mais recente relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) também indica que Portugal está entre os países europeus mais vulneráveis às ondas de calor e a episódios prolongados de seca hidrológica.