O sexismo do “gaydar

Este faro, ao que tudo indica mais eficaz que o “teste do algodão”, representa, acima de tudo, uma forma de perpetuar estereótipos.

Foto
Megafone P3: O sexismo do gaydar Brett Sayles/Pexels
Ouça este artigo
--:--
--:--

O gaydar consiste num termo coloquial que, ao unir as palavras gay e radar, remete para a aptidão, alegadamente intuitiva, de avaliar, ou melhor, adivinhar, a orientação sexual do outro. Corresponde a uma espécie de savoir-faire, uma bússola para identificar a não heterossexualidade de alguém, com base, segundo alguns, num instinto dito infalível.

Não é necessário elaborar uma grande reflexão sobre esta temática para concluir que a consistência intelectual deste inabalável gaydar é, por assim dizer, nula. E que este faro, ao que tudo indica mais eficaz que o “teste do algodão”, representa, acima de tudo, uma forma de perpetuar estereótipos. O seu único suporte retórico traduz-se num diagnóstico das idiossincrasias do outro, como a sua forma de falar, de vestir, de pensar ou, até mesmo, os seus gostos e a sua profissão.

Como será que podemos concluir acerca da orientação sexual de alguém, que é uma das esferas mais íntimas de um ser humano, com base em aspectos tão superficiais? Como poderemos, com tanta facilidade, depreender a respeito dos desejos sexuais de um homem por ser mais “feminino” ou uma de mulher por ser mais “masculina”? Através de um fundamento em terminologias tão flutuantes e, por isso, discutíveis?

Apesar de tanto se falar e de tanto se desconstruir em torno deste assunto, continuamos a testemunhar a banalização de um olhar sobre o outro altamente preconceituoso e, com isso, discriminatório. O mais inusitado é observar alguns membros da própria comunidade LGBT, cuja identidade e activismo têm assentado no combate à estereotipação e ao preconceito, a caírem nesta esparrela sexista.

As mudanças sociais, sobretudo as que concernem a transformação das mentalidades, são sempre profundas, complexas e, muitas vezes, contraditórias. Sim, é possível que um sujeito racializado seja xenófobo, que uma mulher seja machista, que uma lésbica seja homofóbica ou que alguém em dificuldades económicas seja hostil a pessoas em igual privação.

Se queremos defender os valores republicanos (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) em pleno século XXI, precisamos de contrariar, mesmo no plano do discurso, qualquer rotulação do outro, seja pela sua classe social, género, tez, orientação sexual ou maneirismos. Uma das heranças mais importantes dos movimentos sociais das últimas décadas é a ideia de que ninguém deve ser discriminado por aquilo que é. Tão simples quanto isto. Em todas as frentes.

Judith Butler, uma das mais influentes filósofas dos nossos dias, cunhou o termo “performatividade de género” para se referir à performance que somos ensinados a fazer para agradar às expectativas sociais em torno do nosso género. A maneira como um sujeito se apresenta ao exterior é, assim, condicionada e tipificada.

O gaydar, mais que não é do que um mecanismo que avalia o outro consoante o seu aspecto, como se de um espectáculo se tratasse, e o enquadra num lugar-comum. Insiste na falsa e rígida dicotomia gay/hetero, esquecendo-se que a sexualidade é um espectro. Cai no erro de considerar que a exterioridade tem uma ligação directa com a interioridade, operando uma diluição do performativo, que é sempre da ordem do devir e da acção, na aparência. Por outras palavras, nem tudo o que parece é.

Para quem, como eu, acredita que podemos almejar a uma comunidade mais rica, mais justa, mais diversa e, acima de tudo mais feliz, em que cada ser humano pode ser um sujeito emancipado, sabe que não há espaço para ideias preconcebidas. Se advogamos uma sociedade mais livre, em que as pessoas são mais realizadas, não podemos classificar os outros pelas suas peculiaridades. Necessitamos de uma visão interseccional, isto é, de saber olhar para os sujeitos na sua máxima dignidade e libertá-los das mais diversas formas de opressão, como o sexismo, o racismo, a homofobia, a xenofobia e o classissismo.

Numa altura em que se fala tanto, e bem, sobre a necessidade de combater o sexismo, talvez seja importante revisitar conceitos tão trivializados e sublimes, e como tal perigosos, como os de gaydar. Será demasiado ambicioso apelar a que não se deduza a orientação sexual de alguém apenas pela sua forma de estar? Queremos continuar a sustentar mundivisões opressivas e redutoras da diversidade da pessoa humana ou queremos construir uma sociedade em que cada um pode ser aquilo que, pura e simplesmente, é? Comecemos então pelo discurso, não menosprezando o seu poder, pois as palavras são, acima de tudo, actos.

Sugerir correcção
Ler 10 comentários