Recordar Manuel do Laço na primeira pessoa, o boavisteiro que abraçava todo o Porto
Icónica figura da cidade morreu este domingo. Em 2015 foi retratado pelo projecto Porto Olhos nos Olhos, de dois jornalistas do PÚBLICO. Aqui fica o seu testemunho na primeira pessoa
"Dia 27 de Agosto de 1947. Nasci e tornei-me sócio do Boavista quase imediatamente. A minha mãe era boavisteira e foi o natural. Eu, miúdo, andava sempre de fugida para o Bessa. Com quatro anos já andava de laço — por intermédio de um salgueirista — e ajudava em tudo no clube: a levar equipamentos para os jogadores, a marcar o campo. Tudo. A minha querida mãe rezava de todas as vezes que eu saía. Todos os dias lhe peço perdão, porque ela sabia quando eu saía de casa, mas nunca sabia quando é que eu ia chegar.
Com os meus sete anos, com uma agulha, desviava as meias da minha mãe e algodão de uma fábrica que havia no Campo Alegre. Fazia bolas com aquilo. E o que é que 'botava' fora? 'Boavista Futebol Clube.' Não há português que tenha trabalhado tanto para um clube como eu para o Boavista. De coração. E foi por ser muito correcto e ter amizade pelo próximo que fiquei muito doente quando fizeram o que fizeram ao Boavista. Aquilo foi só política.
Quando fiz a minha greve de fome em frente à Liga disse para as televisões: 'Estou a lembrar-me dos trabalhadores que o Boavista vai despedir. E dos filhos deles.' Foi um milagre o Boavista não acabar. Lutei muito por este clube que vai fazer 110 anos. Antes de o Boavista descer nós corríamos o país todo. Todo. E sentia que o povo estava connosco.
Sou católico, mas respeito todas as pessoas e todas as religiões. Ando aí pelas ruas e faço questão de ajudar as pessoas. Seja para subir para o autocarro ou o que for. Uma vez, o [José Maria] Pedroto disse-me: 'Dá-me um abraço, tu és o homem da paz.' Faço questão de ser assim. Sou preto e branco. Por dentro e por fora, dos pés à cabeça. Tenho 39 laços e 27 pares de sapatos. Mas respeito os outros independentemente de tudo isso, de todas as cores.
Todo o desporto foi feito para ganhar, empatar e perder. Havíamos de entrar para os estádios a rir e sairmos abraçados. Quando isso acontecer não haverá relações cortadas entre clubes, não haverá presidentes a dizer mal uns dos outros e haverá mais crianças no futebol. Ando a dizer isto há anos. É claro que me custa ver o meu clube perder. Mas aceito. Só quando é injusto é que é mais complicado.
Quando emigrei, deixei aqui muita gente a chorar. Eu namorava uma mulher de cá, mas era um bocado malandro e não queria casar. Ela emigrou para os Estados Unidos. E a minha querida mãe é que me convenceu que devia ir atrás dela. Ninguém acreditava que eu ia casar. Tinha 36 anos já e não tinha muita vontade de me comprometer.
Passavam-se coisas espantosas na minha vida nessa altura... Não tinha coragem de me despedir da empresa onde trabalhava — uma coisa com 1200 pessoas onde cheguei a ter responsabilidades, mas onde nunca tratei ninguém com menos do que 'o senhor isto', 'a senhora aquilo', 'por favor' e 'obrigado'. Então, para escapar a essa despedida na empresa, fi-la num jogo do Boavista. A rua aqui ao pé de casa encheu-se de gente e o aeroporto ficou à pinha. Queriam despedir-se.
Quando cheguei à América, comecei a trabalhar numa fábrica de calçado e depois mudei para uma companhia de pintura. Se há cem anos, na América, país onde nasceu o meu filho, na França, na Rússia e por esse mundo todo, no lugar de vender armas se vendesse máquinas e sacholas, hoje não havia tanta luta nem tanta fome no mundo. Eu por fora sou muito alegre, mas por dentro sou muito triste. O que me custa é ver este país e esta cidade que tenho no coração com pessoas que passam tão mal. Que têm fome. Que não têm luz e água em casa. O mínimo dos mínimos todos devíamos ter.
No Bessa, há uns tempos, fazia-se a bênção das pastas dos estudantes. Num ano, o bispo estava lá e eu fui dar-lhe um abraço. Disse-lhe assim: 'Senhor Bispo, o estádio está cheio, lá fora também. Está a ver aquela bancada toda cheia de juventude? Onde é que se vão empregar estas pessoas?' E ele diz-me: 'Oh Manuel, que grandes palavras...'
Gostava que todos os políticos deste país fossem ver esta "canalha" que está nas escolas a aprender a ler e lhes dissessem que vão fazer alguma coisa por eles. A minha tristeza é ver estudantes desta minha cidade formarem-se aqui e depois saírem. Eu sou pai e ver um filho partir é uma dor que ninguém devia ter de sentir. A cidade do Porto, essa, tenho-a no coração. Como tenho Portugal. E tudo o que vejo que é feito com vontade de melhorar eu aplaudo."
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