Antes só que mal-acompanhado

Sou enólogofóbico. Se tivesse amigos, tenho a certeza de que alguns seriam enólogos, mas jamais me ocorreria beber vinho nas imediações de um.

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Marisa Cardoso
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Detesto enólogos. Não há pior companhia para beber um bom vinho. E para beber um mau vinho, nem se fala. Sou enólogofóbico. Se tivesse amigos, tenho a certeza de que alguns seriam enólogos, mas jamais me ocorreria beber vinho nas imediações de um. Todo o prazer que um ignorante poderia retirar de um copo de vinho perde-se sob o escrutínio rigoroso e as opiniões avalizadas do especialista. À sombra de um enólogo, o leigo sentir-se-á constrangido a emitir um douto parecer sobre as qualidades da pomada em apreço e o mais certo é que, nesse esforço bem-intencionado, faça figura de autêntico idiota.

A alternativa, a de se refugiar no silêncio pretensioso, não é melhor, pois nesse caso, além de idiota, ganhará fama de alcoólico taciturno e imbecilizado pelo consumo patológico de vinho, um daqueles pobres homens que bebem por vício ou para esquecer. Logo, tão importante quanto o vinho é a companhia. Regra de ouro: evitar enólogos. Regra de prata: procurar apreciadores discretos que não estraguem, com os seus conhecimentos técnico-científicos e enciclopédicos, um momento que os seres humanos desta região do mundo repetem, com a solenidade simples dos gestos quotidianos, há séculos.

Digo-o em homenagem ao amigo que me apresentou aos prazeres dos vinhos da Península de Setúbal, e não só, combustível das nossas peregrinações em dias da semana por tabernas ocultas da Baixa da Banheira, no tempo em que, alumiados por garrafas quase vazias de moscatel, descíamos da vila de Palmela até à estação de comboios, ou em que nas noites de sexta-feira calcorreávamos as ruas do Barreiro velho e nos perdíamos alegremente nas suas tascas, templos e antros.

Nunca conheci melhor companhia para um copo de vinho, e todos os que se seguiam ao primeiro, e para as conversas dele derivadas. A bebida em causa nunca era o assunto, apesar de ser este meu amigo o maior defensor das qualidades desse vinho inesquecível que era (talvez ainda seja) o Fontanário de Pegões. Em jeito de homenagem, abri uma garrafa de um vinho-irmão, o Caves de Pegões, e é sob o efeito deste néctar cujo sabor, de acordo com o rótulo, evoca “frutos vermelhos maduros” e tem “corpo volumoso mas macio com final elegante”, que escrevo esta crónica. Na ausência definitiva do meu amigo, bebo e escrevo e viajo sozinho. O vinho não é mau. A companhia é excelente.


Este artigo foi publicado no n.º 5 da revista Solo.

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