“Não acredito que tenhamos um super El Niño este ano”

El Niño de 2023-24 deverá ser de média intensidade, mas devemo-nos já preparar para uma versão violenta do fenómeno climático em 2026. As previsões são de Robert Leamon, cientista da NASA.

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Robert Leamon é cientista da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e trabalha no Centro Espacial Goddard da agência espacial norte-americana (NASA) DR
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Podemos esperar este ano um El Niño de “média intensidade” e, ao mesmo tempo, devemos estar preparados para um regresso muito potente deste fenómeno climático em 2026. Estas são as previsões de Robert Leamon, cientista da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, que trabalha no Centro Espacial Goddard da agência espacial norte-americana (NASA).

Há quem fale num super El Niño e até em algo apocalíptico como num El Niño Armageddon. Não acredito que estas previsões estejam correctas”, explicou ao PÚBLICO o cientista da NASA, numa entrevista por videochamada a partir da Califórnia, nos Estados Unidos.

O trabalho científico de Robert Leamon debruça-se sobre a evolução do ciclo solar, na previsão do clima espacial e na ligação entre o Sol e o clima, incluindo El Niño e La Niña. Os modelos elaborados pelo investigador para estimar a intensidade do El Niño baseiam-se precisamente na actividade solar. Segundo esta perspectiva, os picos de actividade solar no Pacífico tropical têm impactos de longo alcance, influenciando sistemas meteorológicos em grande parte do mundo.

Desenvolveu um modelo que indica, após alguns anos calmos, ou mesmo neutros, que um El Niño forte chegará em 2026 – e não este ano, como alguns modelos prevêem. Pode explicar melhor?
O modelo em causa é baseado na actividade solar e geomagnética. O ciclo solar é uma mudança periódica na actividade do Sol, que nós podemos medir através do número de manchas solares observadas na superfície do Sol. Estes ciclos parecem ocorrer a cada 11 anos. Logo após um ciclo solar atingir o seu máximo, com um pico em termos de actividade geomagnética, é quando temos um grande El Niño, um El Niño realmente forte. Então, como ainda estamos um pouco antes do ciclo solar, se o meu modelo estiver correcto, não acredito que vejamos este ano este super El Niño que muitos esperam. Isto só ocorrerá em 2026.

Apostaria então, para 2023 e 2024, num El Niño de média intensidade?
Sim, apostaria em média intensidade. Mas há quem fale num super El Niño e até em algo apocalíptico como num “El Niño Armageddon”. Não acredito que estas previsões estejam correctas. Como escrevi num artigo, para termos um El Niño forte, uma zona muito específica no oceano Pacífico precisa de aquecer 1,5 graus Celsius durante três meses. [A tal zona específica chama-se região 3.4 e consiste num grande rectângulo imaginário que se estende ao longo da linha do Equador.] Ora, não está claro até agora se vamos atingir ou ultrapassar esse limite. Lembre-se de como foi forte o El Niño de 2015, e esse esteve bem acima dos 1,5 graus Celsius.

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Dois exemplos de El niños fortes: à esquerda, em 1997, e à direita o de 2015, quando Portugal testemunhou sete ondas de calor JPL/NASA

Por que razão prefere modelos estatísticos a modelos dinâmicos?
Prefiro modelos estatísticos porque é mesmo muito difícil incluir tudo num modelo computacional. Muitas vezes é preciso estimar ou fazer aproximações, o que também é verdade para modelos meteorológicos. É como quando, num jogo de futebol, passamos a bola assumindo que vamos ter uma determinada reacção do outro jogador. Em nove das dez vezes que passarmos a bola, esta reacção até pode ser correcta, mas nem sempre será assim. E este é o desafio de fazermos aproximações, ao passo que nos modelos estatísticos estamos a olhar para dados do passado, eventos que já ocorreram.

É sempre possível argumentar que, se estou a olhar para os dados do passado, também estou a partir de um pressuposto, que é o de que os padrões do passado se vão repetir no futuro. Mas, no meu caso, sinto-me mais confiante em fazer apostas olhando para como as coisas aconteceram no passado. É o meu padrão psicológico.

Contudo, com as alterações climáticas, há novos factores em jogo que não havia no passado. Como fazer previsões baseadas em dados do passado quando, de algum modo, estamos a entrar num território desconhecido?
Tem toda a razão. Ninguém sabe exactamente o que vai acontecer, como este El Niño vai evoluir. Podemos apenas fazer previsões baseadas em modelos. Não sabemos se o planeta mais quente que habitamos hoje vai fazer com que aquilo que acontece no oceano Pacífico fique ou não no Pacífico. Ou seja, não sabemos como (e se) as alterações climáticas vão alterar as teleconexões [estas análises compreendem uma visão geral da circulação atmosférica, onde forças locais agem para influenciar regiões remotas], como costumamos chamá-las.

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O que o El Niño pode trazer para Portugal?
Durante o El Niño, os invernos tendem a ser mais húmidos na Europa. Isto pode trazer boas notícias para países do Sul da Europa, que estão a enfrentar condições de seca hidrológica. O El Niño pode trazer boas ou más notícias dependendo do local onde vivemos. Creio que podemos ser cautelosamente optimistas em relação a Portugal, não esquecendo que as chuvas também podem ser tempestades que causam inundações.

Falemos agora de La Niña – que tem uma acção oposta ao El Niño, fazendo baixar ligeiramente os termómetros. Já tinha previsto que La Niña estaria a influenciar o clima global por três anos consecutivos. Pode falar mais sobre esta previsão de “triplo mergulho” que acabou por se confirmar?
A previsão do “triplo mergulho” do La Niña também surge no contexto do trabalho que desenvolvo sobre o ciclo solar. A actividade do Sol segue um padrão de altos e baixos num ciclo de cerca de 11 anos, como referi, mas o Sol é também um íman. Os campos magnéticos do Sol alteram-se a cada 11 anos, no pico mais activo das manchas solares. Há uma inversão dos pólos Norte e Sul. Então, essencialmente, temos 11 anos com o íman a apontar para cima e outros 11 anos com o íman a apontar para baixo.

Por isso, na verdade, o ciclo solar integral demora 22 anos [somando-se os dois ciclos de 11 anos]. E, ao que parece, há 22 anos, em 1997-1998 [o actual ciclo solar de 11 anos começou em 2019], foi de facto a última vez que tivemos esse grande mergulho. E nessa altura o alinhamento dos campos magnéticos era semelhante. Isto porque a influência do Sol nas camadas superiores da atmosfera (a ionosfera) afecta de alguma forma as teleconexões.

Eu não dispunha de um modelo para prever o triplo mergulho de La Niña [que influenciou o clima nos últimos 3 anos], não escrevi um conjunto de equações num papel. Mas, ao mesmo tempo, não me surpreendi quando aconteceu porque, há mais ou menos 22 anos ou, para ser preciso, há dois exactos ciclos solares –, aconteceu a mesma coisa.

Como começou a estudar os ciclos solares? E por que razão acha que são tão relevantes para os estudos do clima?
Durante toda a minha carreira, incluindo o meu doutoramento, sempre analisei grandes quantidades de dados para tentar encontrar padrões. Era um pouco como uma aprendizagem automática da Inteligência Artificial, mas utilizando apenas o meu cérebro e eu não sou definitivamente artificial!

Quando vim para a NASA, em 2003, trabalhei com o SoHO (Solar and Heliospheric Observatory), uma sonda espacial não tripulada que foi lançada, em Dezembro de 1995, pela NASA em parceria com a Agência Espacial Europeia. Por isso, já tinha oito anos de dados para analisar as alterações a longo prazo. O SoHO ainda está a funcionar! São necessários vários anos de observações para estudar a longo prazo. É mais ou menos como a diferença entre tempo e clima uma medida de tempo.

O tempo é o que as condições da atmosfera são num curto período de tempo e o clima é a forma como a atmosfera se comporta" em períodos de tempo relativamente longos. As manchas solares individuais, as ejecções de massa coronal [uma nuvem gigante de plasma solar encharcada com linhas de campo magnético que é soprada para longe do Sol, muitas vezes durante fortes erupções solares de longa duração] e as tempestades geomagnéticas são como o tempo”.

Já o ciclo de 11 anos (e as flutuações ao longo de vários ciclos) representa o clima. A forma como o Sol afecta a Terra (quantos Watts de energia solar...) é uma parte importante dos grandes modelos informáticos climáticos.

A relação entre os ciclos solares e o sistema climático El Niño está bem estabelecida cientificamente?
Esta é uma pergunta muito pertinente. A resposta curta é não muito. De facto, na introdução do meu primeiro artigo sobre o Sistema Climático El Niño/Oscilação Sul (ENSO), escrevemos a procura da ligação entre a variabilidade da atmosfera solar e a da nossa troposfera tornou-se uma 'ciência de terceira linha' que não deve ser tocada a qualquer custo. É difícil separar estatisticamente o ciclo solar de 11 ou mais anos da oscilação do ENSO de três a sete anos. Mas tentar ligar a atmosfera apenas aos máximos e mínimos solares torna isso mais difícil.