Porque a moratória à mineração no mar dos Açores protege mesmo o mar profundo
O geólogo Júlio Santos, em artigo publicado no jornal PÚBLICO, faz a seguinte pergunta: "Será que a moratória dos Açores defende mesmo o seu mar profundo?” A resposta do autor do artigo revela, no mínimo, desconhecimento do que foi aprovado.
Por isso, sendo um dos proponentes da proposta, não posso deixar de responder às críticas infundadas.
O grupo parlamentar do Bloco de Esquerda na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores foi o proponente da proposta inicial que mais tarde foi substituída por uma proposta subscrita em conjunto com o PAN. Conheço por isso muito bem a proposta e o processo que a originou.
O processo legislativo destas propostas demorou quase um ano, iniciou-se em junho de 2022 e terminou em abril de 2023. Foram realizadas várias audições e pedidos de parecer presenciais a diversas entidades com conhecimento e interesse na matéria, desde cientistas com provas dadas nesta área, associações ambientais e de produtores.
O debate sobre esta matéria foi exaustivo e não se resumiu às três horas do debate em plenário que o autor quer fazer crer que terá sido a única reflexão realizada sobre o assunto. Acresce a isso que o tema da mineração do mar profundo é nos Açores, ao contrário do que acontece no resto do país, tema de reflexão e debate político há vários anos.
O Bloco tem procurado colocar este assunto na agenda ao longo do tempo. Mas o próprio interesse de empresas na mineração do mar profundo e intenções do Governo da República obrigam a que este debate seja uma realidade nos Açores. Recordo que a empresa Nautilus (entretanto falida) chegou a submeter pedidos de prospecção no mar dos Açores e que em 2016 a então ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, afirmava que o “desenvolvimento de actividade mineira no Atlântico é menos arriscada em termos geopolíticos, é economicamente mais vantajosa e tem menos impactos nos recursos marinhos”. Como se vê, a discussão não é de agora.
Por outro lado, há informação recente com credibilidade mais do que suficiente para que o princípio da precaução seja aplicado nesta matéria e se opte pela moratória precaucionária. Um recente estudo do centro de investigação Okeanos, da Universidade dos Açores, publicado na revista Frontiers of Marine Science, indica claramente que a mineração do mar profundo poderá “afetar ecossistemas marinhos vulneráveis e a pesca comercial”.
A moratória foi aprovada, não só após a audição de especialistas, mas também tendo em conta estudos e um debate muito para além das paredes do parlamento dos Açores. Foi uma decisão ponderada e acertada, que coloca a preservação ambiental e a compatibilização entre atividades à frente de uma corrida extrativista que em nada beneficiaria a população dos Açores, que iria, no entanto, pagar os custos ambientais.
Mas a principal crítica de Júlio Santos é de que a moratória à mineração do mar profundo do mar dos Açores significa uma proibição da investigação científica do mar profundo porque se alarga às atividades de prospeção.
É uma acusação absurda. Pelo contrário, a moratória aprovada é o garante de que a ciência pode continuar a estudar o mar profundo em todas as áreas da ciência: da biologia, à geologia, à oceanografia. É o garante de que não haverá um qualquer contrato de prospeção, que obviamente tem em vista a exploração comercial e que, recorrendo a meios invasivos, poderia destruir ecossistemas únicos, tão ou mais desconhecidos como Marte.
Não é apenas nos Açores que se aprovam e criam moratórias à mineração do mar profundo. Há moratórias em águas nacionais das ilhas Fiji, Palau, do Território Norte da Austrália, dos estados da Califórnia e Washington (EUA), França, Espanha, do Supremo Tribunal da Nova Zelândia, da Nova Caledónia e Polinésia Francesa (França) e do Canadá. O tema da mineração do mar profundo e da constituição de moratórias tem sido discutido a nível mundial. A decisão política dos Açores junta-se assim a um movimento global que privilegia a proteção dos ecossistemas, a ciência e o desenvolvimento de atividades económicas compatíveis com a preservação ambiental e não o extrativismo que ameaça destruir a última fronteira do planeta.
É ainda importante dizer que a leitura e análise da resolução aprovada no parlamento dos Açores é fundamental para se perceber o que se aprovou. A leitura é ainda mais importante para quem pretende criticar a decisão do parlamento dos Açores. Não se decidiu promover um novo estudo em 2050, como afirma erradamente o autor, mas sim avaliar a necessidade de prolongamento da moratória à luz do conhecimento existente à data e que a moratória permite continuar e aprofundar.
Por último, esclarece o autor que é filho e neto de pescadores e que por isso duvida que qualquer habitante dos Açores adore mais do que ele o seu mar. Não discuto o amor ao mar de cada um, e eu, como filho e neto de pescadores, não presumo que por isso a minha preocupação com os ecossistemas marinhos é superior à de alguém. Amores à parte, serão os açorianos e açorianas a sentir em primeiro lugar as eventuais consequências negativas da eventual decisão em minerar o mar profundo dos Açores. A palavra dos açorianos e açorianas deve por isso prevalecer. E a opinião do autor talvez deva ser lida tendo em conta que este integrou equipas de prospecção e pesquisa de lítio e cobalto em vários países.
Esta é uma questão política sobre o que se quer privilegiar: os ecossistemas e a compatibilização de atividades existentes e novas que se possam desenvolver a partir da investigação científica no mar profundo, nomeadamente ao nível da biotecnologia ou uma efémera e potencialmente destrutiva corrida ao minério no fundo do mar. Na minha opinião não há dúvidas sobre a decisão a tomar: a moratória à mineração é um imperativo e a sua aprovação foi um marco histórico.
O autor escreve segundo o acordo ortográfico