O Boletim Oficial da Junta de Andaluzia de 26 de Abril de 2022 trouxe uma informação que era temida pelas populações dos municípios de Cortegana, Almonaster la Real e Aroche: anunciava a “admissão definitiva” do pedido de autorização de pesquisa mineira, o projecto Valdegrama, solicitado pela empresa espanhola Geoland Services, SI. O plano para um território com cerca de 2000 hectares irá colidir com os ecossistemas do Parque Natural de Aracena e Picos de Aroche, junto à fronteira com Portugal, nos concelhos de Serpa e Mértola.
A informação vinha confirmar os receios anteriormente expressos pela Plataforma de Cidadãos, Alcalaboza Viva, criada para informar e esclarecer as populações sobre os efeitos do novo couto mineiro nas suas vidas e na actividade económica das comunidades afectadas pela exploração mineira.
O antropólogo e professor da Universidade de Sevilha Félix Talego, dirigente da plataforma, descreveu ao PÚBLICO os impactos que a actividade terá na região: O projecto Valdegrama está localizado na nascente de três cursos de água e na perpendicular do aquífero Aroche-Jabugo, junto à fronteira portuguesa. Este aquífero é uma das duas reservas de água “mais importantes” da serra Morena de Huelva.
“Até hoje, tem permanecido a salvo de metais pesados”, mas com a nova mina pode ser afectado pela “superexploração ou pela contaminação ácida e metálica”, prossegue Félix Talego, realçando o perigo que este projecto representa para as linhas de água: “A margem do Alcalaboza é cristalina e frondosa até à foz no Chança (rio que delimita a fronteira entre Portugal e Espanha). E só esta margem e os cursos superior e médio do Chança permanecem a salvo da drenagem ácida das minas entre todos os afluentes importantes do Guadiana.
“Entendemos que a gravidade da ameaça aos cursos de água superficiais é máxima”, sublinha o professor da Universidade de Sevilha, fazendo um paralelismo com o que actualmente se passa com o rio Chança no troço que recebe o afluente de São Domingos (mina portuguesa no concelho de Mértola, já encerrada, mas que continua a gerar acidez com os sedimentos metálicos).
Portugal e Espanha devem manter a vida
A barragem que Espanha instalou nos anos 80 na confluência do rio Chança com o rio Guadiana, junto ao antigo porto mineiro do Pomarão, “é a segunda albufeira mais importante da Andaluzia Ocidental, e um regulador fundamental no curso do baixo Guadiana”, lembra Talego. E a contaminação das linhas de água até agora salvaguardadas da contaminação “acrescentá-las-ia à lista dos rios doentes ou mortos do Sudoeste ibérico quando hoje representam o contributo fundamental de água limpa para a albufeira de Chança”, alerta o antropólogo, pedindo a intervenção das “autoridades portuguesas, andaluzas e espanholas” para ouvirem “os que querem continuar a viver aqui e deixar que os nossos filhos o façam”.
Dezenas de linhas de água foram profundamente contaminadas ao longo dos últimos 150 anos pela exploração de metais não-ferrosos (sobretudo cobre e estanho) que devastaram o território da faixa piritosa ibérica, que atravessa o Alentejo, a Extremadura e a Andaluzia, numa extensão de cerca de 250 quilómetros de comprimento e 30 a 50 quilómetros de largura.
Acresce ainda que o projecto de Valdegrama coloca a albufeira de Chança (que assegura o consumo humano na aldeia do Pomarão) em risco de acidificação e de ameaça de deposição de sedimentos de metais pesados, quando esta reserva de água “é essencial” para garantir água potável e agrícola à região de Huelva, e afluentes do curso internacional do Guadiana e no seu estuário do Guadiana, em Vila Real de S. António, alerta o antropólogo.
Grafite é o minério prioritário
Ao longo dos próximos três anos, decorrerá a sondagem do subsolo da região abrangida pelo projecto Valdegrama com a abertura de 20 furos até uma profundidade de 200 metros para a procura de minerais (entre eles: grafite, ouro, prata, níquel). A grafite é o mineral prioritário que a Geoland Services pretende extrair no território da serra de Huelva, assinala a plataforma de cidadãos na sua página online.
A crescente procura por metais levou ao início de novos projectos de mineração em todo o mundo. O relatório publicado pelo Banco Mundial, em 2021, Minerals for Climate Action: The Mineral Intensity of the Clean Energy Transition, conclui que a produção de minerais, como grafite, lítio e cobalto, “pode aumentar em quase 500% até 2050, para satisfazer a crescente procura de tecnologias que recorrem a formas de energia limpa.
Estima-se que mais de 3 mil milhões de toneladas de minerais e metais serão necessários para implantar energia eólica, solar e geotérmica, bem como armazenamento de energia.
É este aumento da procura de cobre, grafite e outros minerais e metais está a gerar a retoma da actividade mineira na região de Huelva, em matérias-primas consideradas cruciais pela União Europeia. O Instituto Geológico e Mineiro espanhol destaca: antimónio, bário, berílio, bismuto, boratos, cobalto, estrôncio, flúor, fosfatos, grafite, lítio, platinóides, silício, terras raras, titânio, vanádio e tungsténio.
Gerar pão para hoje e fome para amanhã
A Plataforma de Cidadãos Alcalaboza Viva, reportando-se ao passado da exploração mineira na região de Huelva, avisa que, por de trás do emprego que as empresas mineiras garantem nos dias de hoje, as mesmas empresas “continuarão a gerar pão para hoje e fome para amanhã”, numa referência à desertificação da região andaluza. Nos dias de hoje esta realidade traduz-se na falta de biodiversidade, perda de capacidade produtiva dos solos e escassez de recursos hídricos e no que resultou do dramático despovoamento humano.
A repercussão da exploração mineira de Valdegrama na qualidade das águas internacionais do Guadiana é uma matéria que a Plataforma Alcalaboza Viva considera poder vir a justificar uma reclamação à Comissão para a Aplicação e o Desenvolvimento da Convenção de Albufeira.
O PÚBLICO perguntou à Agência Portuguesa do Ambiente se foi informada do projecto Valdegrama e das consequências que poderá vir a ter no troço do Guadiana internacional, mas não houve resposta.