Coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública demite-se
Nova lei das ordens profissionais ditou saída. Medidas são “escandalosa tentativa de liquidação de elementares competências legais da Ordem dos Médicos e de ingerência política e governativa”.
O coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública, Mário Jorge Neves, demitiu-se em protesto contra a nova lei das ordens profissionais. Na carta de demissão, considera as medidas aprovadas pelo Governo e promulgadas pelo Presidente da República “uma violenta e escandalosa tentativa de liquidação de elementares competências legais da Ordem dos Médicos e de ingerência política e governativa na autonomia e independência técnico-científica da profissão”. Em comunicado enviado ao final do dia, o Ministério da Saúde afirmou que "recebeu com surpresa a notícia da demissão" e assegurou que o projecto de novos estatutos "não altera o modelo de formação médica".
Mário Jorge Neves acusa o Governo de estar a “escancarar as portas para poder ser liquidada a carreira médica e ser estabelecida uma extrema precariedade laboral a nível dos médicos mais jovens”. E dá exemplos. No novo estatuto, os médicos que iniciam a sua actividade profissional deixam de ser considerados internos e passam a ser estagiários. “O contrato de trabalho passa a ser um contrato de estágio e o salário mensal passa a ser uma bolsa de estágio mensal.” Por outro lado, as disposições da livre concorrência “sobrepõem-se a tudo, esmagando as garantias da qualidade do exercício da profissão médica e os níveis de segurança dos actos próprios dos médicos”.
Em nome dessa livre concorrência “chega-se ao ponto de possibilitar o exercício da profissão médica sem necessidade de inscrição na Ordem dos Médicos”. Para Mário Jorge Neves, as novas regras do exercício da profissão "visam instaurar o clima do comissariado político cavaquista inaugurado em 1988 com as nomeações político-partidárias para os vários níveis de gestão dos serviços públicos de saúde", prática que tem constituído "um decisivo factor de erosão e debilitamento do Serviço Nacional de Saúde".
"A minha dignidade profissional como médico não me permite continuar a desempenhar essas funções porque isso significaria muito simplesmente colocar-me como cúmplice activo desta ofensiva do Governo contra os médicos e o Serviço Nacional de Saúde", justifica, acusando o Partido Socialista de se ter rendido ao "neoliberalismo mais extremista de inspiração thatcheriana".
Enviada à secretária de Estado da Promoção da Saúde, a carta de demissão elenca ainda outras disposições legais consideradas gravosas: "Existir um chamado provedor de serviços não médico, estabelecer a criação de um órgão de supervisão para regular o exercício da profissão médica, presidido por um cidadão não médico e constituído maioritariamente por não médicos, que vai ao extremo de intervir na definição de regras dos estágios profissionais e até das próprias especialidades e, ainda, estabelecer órgãos disciplinares integrados por não médicos constituem um somatório monstruoso destas medidas governamentais."
"Nem nos tempos do regime ditatorial deposto em Abril de 1974 houve descaramento político para ir tão longe", observa o até aqui coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública, que estava no cargo desde o início de 2020. E que recorda como, em Novembro de 1972, o fascismo procedeu à anulação da eleição dos dirigentes da Secção Regional Sul da Ordem dos Médicos. A PIDE ocupou a sede da Ordem dos Médicos, prendeu vários dirigentes e encerrou as instalações, nomeando em seguida um comissário político. "São estes os antecedentes inquietantes que nos trazem à memória tempos negros de ódio aos médicos e às suas organizações representativas. A gravidade brutal destas medidas impõe à minha consciência cívica um imperativo de intervenção enérgica na luta que se avizinha", avisa.
Durante a manhã o PÚBLICO pediu uma reacção ao Ministério da Saúde a esta demissão e questionou se já haveria indicação de quem poderá vir a substituir o médico na comissão. O ministério não respondeu à última questão, mas enviou uma reacção em forma de comunicado. Agradecendo a colaboração de Mário Jorge Neves no processo de reforma da saúde pública, o ministério considerou que os motivos invocados pelo médico para a sua demissão "só podem resultar de um equívoco".
"O projecto de novos Estatutos da Ordem dos Médicos não altera o modelo de formação médica, não modifica o papel central do Serviço Nacional de Saúde e não muda a especificidade da intervenção dos médicos e da sua ordem profissional. Clarifica-se que os estágios profissionais não são uma inovação neste projecto de estatutos, estando já previstos nos Estatutos da Ordem dos Médicos actualmente em vigor. Da mesma forma, o projecto de novos estatutos não sofre qualquer alteração quanto à obrigatoriedade de inscrição na Ordem dos Médicos, sendo referido explicitamente que ninguém pode exercer a profissão de médico sem estar inscrito na Ordem, tal como acontece presentemente", disse, acrescentando que os trabalhos para a revisão dos estatutos "decorrem com serenidade".
"É uma situação gravíssima"
Em Janeiro passado os membros desta comissão já haviam apresentado a sua demissão. Lamentavam que quase três anos depois de terem iniciado funções nenhum dos documentos que produziram tivesse sido “susceptível de ser considerado útil” para uma tomada de decisão governamental. Mas acabaram por recuar e manter-se em funções.
A situação actual é todavia diferente. Mário Jorge Neves explica ao PÚBLICO que o pedido de demissão "foi uma decisão pessoal, que tem a ver com a legislação relativa às ordens profissionais, a regulação da profissão médica e a independência da profissão". Afirmando não querer ser colaboracionista com o que considera "um atentado à dignidade" da profissão médica, o ex-coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública diz que "não podia ficar numa situação híbrida" ao manter-se num cargo que resultou de uma nomeação política.
"Para saltar para o terreno da luta não posso estar limitado por cargo de nomeação por parte da secretária de Estado da Promoção da Saúde. Não posso estar também em conflito de interesses", diz, acrescentando que vai participar em todas as acções reivindicativas que existirem contra a lei das ordens profissionais. A carta de demissão foi enviada na terça-feira à secretária de Estado da Promoção da Saúde, assim como aos outros elementos que fazem parte da Comissão para a Reforma da Saúde Pública. Uma cópia foi também enviada para o bastonário da Ordem dos Médicos.
Mário Jorge Neves assegura que esta é uma decisão sem retorno, acrescentando que a legislação em causa "é um ataque visceral à Ordem dos Médicos como instituição". "A garantia da qualidade e segurança dos cuidados médicos passam a estar em causa. A nível internacional, os médicos portugueses eram dos mais bem preparados. Vamos ser transformados, por força de uma lei, em capachos de interesses económicos e político-partidários. É uma situação gravíssima", aponta.
A nova lei das ordens profissionais tem sido alvo de forte contestação. A bastonária dos Advogados já ameaçou fazer parar os tribunais. Fernanda de Almeida Pinheiro tem do seu lado os ex-bastonários António Marinho e Pinto, Guilherme Figueiredo, Elina Fraga e Rogério Alves, todos em sintonia "no repúdio" à proposta de revisão dos estatutos profissionais levada a cabo pelo Governo.
Nota: notícia actualizada com a reacção do Ministério da Saúde.