O fenómeno climático El Niño já está aí, e traz na bagagem a promessa de um 2023 e 2024 muito mais quente e húmido em Portugal, com forte probabilidade de novos recordes de temperatura. Estamos a entrar “num território desconhecido” e “este El Niño será mais forte do que vimos no passado”, afirma ao PÚBLICO Samantha Burgess, vice-directora do Serviço de Alterações Climáticas do Programa Copérnico (C3S, na sigla em inglês) da União Europeia.
Após três anos do padrão climático La Niña – que, ao contrário do El Niño, tende a fazer baixar ligeiramente os termómetros do planeta –, o Centro de Previsão Climática da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOOA, na sigla em inglês) declarou oficialmente o regresso do fenómeno na última quinta-feira.
“Se olharmos para o historial de fenómenos El Niño, aquilo que vemos em geral, mas em particular em Portugal, é que tendem a ser mais quentes do que o normal e com mais precipitação do que é habitual para o período – o que não significa, necessariamente, que este será o padrão meteorológico deste ano”, explica Samantha Burgess ao PÚBLICO.
Chuva é uma boa notícia?
Num país como Portugal, onde 40% do território se encontra em condições de seca severa e extrema, a palavra “chuva” pode soar como música aos ouvidos de muitos. “As nossas previsões mais recentes sugerem que este Verão será mais húmido do que a média no Mediterrâneo, e na Península Ibérica em particular, o que pode ser uma boa notícia, considerando a seca hidrológica”, confirma a responsável do C3S.
Temos motivos, então, para celebrar? Bem, “depende”... Se se tratar de episódios de precipitação de baixa intensidade, provavelmente, sim. Contudo, no “território desconhecido” das alterações climáticas, estamos a perder dias de chuva tranquila, que hidrata o solo com vagar, sem a violência dos temporais súbitos.
“Temos agora menos dias de precipitação suave. Quando há chuva, cai de um modo mais rápido e intenso – o que pode ter consequências significativas, tais como cheias súbitas. Então, em vez de termos vários dias seguidos de chuva de baixa intensidade, podemos ter dois dias de chuva muito forte, o que pode constituir um problema para solos muito secos”, explica Samantha Burgess.
Quando um território não “vê” água durante longos períodos, os solos ficam secos e duros, sem capacidade para absorver, de repente, uma grande quantidade de água. Episódios súbitos e intensos de precipitação trazem poucos benefícios ao solo, dando origem a inundações e a fluxos de água que seguem sobretudo em direcção ao mar, em vez de melhorarem terrenos aráveis e reservatórios naturais de água.
“Não temos uma bola de cristal para saber como vai ser em Portugal. Pode ser que tenhamos episódios de chuva suave, mas a probabilidade é a de que ocorram agora com menos frequência do que no passado”, avisa a responsável.
O que acontece no Pacífico não fica no Pacífico
O El Niño tem origem em águas invulgarmente mornas do oceano Pacífico oriental, próximo à costa do Peru e do Equador, sendo comummente acompanhado por um abrandamento ou inversão dos ventos alísios de Leste.
“Só que é preciso lembrar que o que acontece no Pacífico… não fica no Pacífico. Nós precisamos de pensar no oceano como um só sistema. O que acontece localmente pode ter repercussões globais, nós só temos uma atmosfera”, afirma ao PÚBLICO Robert Leamon, cientista na agência espacial norte-americana (NASA) e na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos.
O El Niño é conhecido “pelo menos há quatro séculos”, recorda Samantha Burgess. Existem, refere, relatos antigos de pescadores peruanos que observavam a redução da abundância de anchovas em determinados anos, devido ao sobreaquecimento das águas costeiras.
Trata-se, portanto, de um fenómeno climático natural e que não é causado pela mudança antropogénica do clima. Foi identificado e estudado muito antes de a crise climática se tornar uma ameaça global. Contudo, receber o El Niño num planeta que já está com os termómetros a subir pode ter consequências difíceis que, para já, não podem ser definidas com precisão através de modelos científicos.
O El Niño vai ser forte ou fraco?
Os dados disponíveis actualmente apontam para “um El Niño de média intensidade”. No entanto, a vice-directora do C3S frisa que só o tempo poderá dizer a intensidade que o fenómeno terá desta vez, sendo necessário acompanhar como o fenómeno evolui “nos próximos meses”. Mais uma vez, a incerteza.
Não há consenso científico sobre como o El Niño – “o menino”, em português – se vai comportar ao longo deste ano e do próximo. A primeira previsão da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA, divulgada em 8 de Junho, estima uma probabilidade de 84% de o El Niño ultrapassar o nível moderado no Inverno e de 56% de que seja forte.
Já os cálculos do cientista Robert Leamon, por exemplo, não apontam para um fenómeno robusto em 2023. “Ao contrário do que sugerem alguns modelos dinâmicos, o meu modelo indica – assim como outros modelos estáticos – que 2023 não vai ter uma grande intensidade. Talvez média. Vamos ter alguns anos tranquilos, ou até mesmo neutros, e depois encontraremos um forte El Niño em 2026”, explicou ao PÚBLICO o cientista da NASA.
Samantha Burgess admite que muitos cientistas manifestam algum “nervosismo” diante das séries de dados climáticos. O El Niño é um fenómeno que acompanha a humanidade, havendo cerca de 150 anos de registos, dos quais mais de 80 com informação de qualidade.
Ao longo desse período, a ocorrência da La Niña em três anos seguidos – o chamado “triplo mergulho” – só ocorreu três vezes. É um acontecimento raríssimo. E nós estamos mesmo a sair desse terreno incomum, podendo estar prestes a pisar noutro do mesmo calibre.
“Com as alterações climáticas a tornar a atmosfera mais quente e húmida, não sabemos como isto vai afectar a dinâmica particular do El Niño. Estamos também num território desconhecido devido à quantidade de gases de efeito estufa na atmosfera, não temos realmente a capacidade de antever”, alerta Samantha Burgess.
A cientista recorda que as duas últimas visitas do El Niño foram em 2016 e 2020, os dois anos mais quentes de que há registo. E lembra ainda que nós, na Europa, e em Portugal em particular, temos testemunhado vários extremos absolutos de temperatura nos últimos anos. No ano passado, por exemplo, 11 países europeus viveram o ano mais quente desde que há registo.
“Isto deixa-nos muito nervosos acerca da possibilidade de ter mais episódios climáticos extremos, como mais ondas de calor, mais tempestades súbitas. E a Europa está a aquecer mais rapidamente do que a média global”, confessa Samantha Burgess. “Nós conhecemos a capacidade de o El Niño fazer subir as temperaturas. Então, a expectativa é a de que 2023, e definitivamente 2024, possam vir a ser os anos mais quentes que alguma vez tivemos”, conclui.