Eu não dou uma esmola a um pobre
Mas como é que se pode ajudar estas pessoas que têm o mesmo direito a ser felizes do que nós?
Há uns dias, enquanto passava à porta do supermercado, perto de minha casa, registei um momento, com muita atenção. Uma senhora pedia esmolas sentada no chão e uma rapariga, eu diria à volta dos 30 anos, de uma forma muito querida, aproximou-se para falar com a senhora.
A minha curiosidade e a minha costela jornalística, de quem gosta de registar alguns momentos com atenção, fizeram-me parar e observar o momento, a escassos metros, mas sem que se apercebessem que eu estava a ver e ouvir como um espião, durante uns segundos.
A rapariga disse com muito carinho: “Precisa de alguma coisa para comer? Quer que eu traga uma sandes ou outra coisa?” Eu vi e senti genuína bondade. Via-se mesmo que era uma boa pessoa, com uma empatia muito honesta e muita vontade de ajudar quem mais precisa do nosso sentido de humanidade. Mas eu estive mesmo para ir atrás dela, e dizer-lhe “não é assim que se faz!”. Não o fiz, mas atrevo-me a escrever estas palavras, sempre disponível a estar errado e aprender com outras opiniões, nomeadamente de quem tem anos e décadas de trabalho de luta contra a pobreza, que não é o meu caso.
Primeiro esta senhora que estava a pedir pertence a uma “máfia” que os coloca estrategicamente em determinados locais, muitas vezes com crianças, com um “teatro” bem estudado. Mesmo que não seja dinheiro e seja “só” comida, estamos a alimentar a mendigagem de rua, a alimentar esta “máfia” que está por detrás, e nada estamos a fazer para tirar da pobreza esta senhora.
Segundo, mesmo que esta senhora fosse “apenas” uma pessoa pobre a pedir, e que não faça parte destas "máfias", não é assim que se ajuda, seja com dinheiro seja com comida. Temos de transformar a nossa empatia em compreensão da ajuda humanitária e da sua eficácia. Aquilo a que se chama "altruísmo eficaz". Eu gosto também de lhe chamar "literacia humanitária".
Nós somos feitos de afetos e emoções e, quando nos dizem que há 2,3 milhões de portugueses abaixo do limiar da pobreza, dizemos para dentro: “Eu não posso fazer nada”. Mas quando o nosso caminho se cruza com alguém que acorda os botões da nossa empatia, sentimos que podemos fazer “qualquer coisinha” – que, mesmo sendo genuína, pode ter, paradoxalmente, o efeito contrário ao da nossa boa vontade.
Há muitos anos que eu não dou uma esmola a um pobre, e por vezes dói-me horrores não fazê-lo. Quando me pedem, eu nunca finjo que não existem. Eu olho-os nos olhos, digo “bom dia”, digo que não vou dar nada, engulo essas emoções a seco e reforço a minha vontade de ajudar as organizações que sabem as formas mais eficazes de ajudar a combater pobreza, inclusive com aquilo que é a solução mais duradoura: retirá-los da pobreza e oferecer-lhes caminhos e soluções para a sua autonomia económica.
Mas então como é que se pode ajudar estas pessoas que têm o mesmo direito a ser felizes do que nós?
Pensamento político. Quer por ignorância, quer pela vontade de me manter publicamente um ser apolítico, não vou desenvolver, mas é o nosso voto a forma mais eficaz de transformar empatia em ajuda a quem mais precisa, não é com esmolas.
Ajudar as organizações que o fazem. Desde as mais pequenas e totalmente voluntárias até às maiores e já altamente profissionalizadas (e bem). Pode ser com bens, o que por vezes a uma pequena escala, na ajuda de proximidade pode ser muito útil: comida, roupa, etc.. mas, ainda assim, é pouco eficaz.
Eu sei que é frio e cruel o que eu vou dizer, mas é com dinheiro que se ajuda, ou seja, donativos às organizações humanitárias sem fins lucrativos. Para isso é preciso que, de uma vez por todas, se “varra” das cabeças das pessoas a desconfiança que traduzem frases ocas como “eu não sei para onde é que o dinheiro vai”.
Isto é como os nossos impostos: lá porque há gente que os usa mal ou até algumas maçãs podres, não vamos deixar de acreditar na importância de se pagar impostos para que todos os portugueses possam ter saúde, educação, segurança e justiça, e tudo mais que nos faz funcionar como um todo.
Temos sempre de lutar para que o sistema melhore, mas não é mandando abaixo a democracia e sistema tributário, digo eu, que se resolve os problemas. O mesmo com os donativos. Algumas maçãs podres, tipo o caso Raríssimas ou os casos da ajuda a Pedrogão Grande, não podem manchar a confiança dos portugueses nas pessoas que lutam todos os dias por um mundo melhor, alguns gratuitamente outros a receber por isso, o que me leva ao próximo ponto.
Voluntariado. Foi o nome que eu e a minha equipa demos à feira que vai acontecer nos dias 17 e 18 de Junho, porque é a palavra mais bem compreendida pelas pessoas para explicar a ajuda humanitária, mas que aqui aproveito para desconstruir. É uma palavra linda e pela qual tudo começa, e que significa compromisso sem remuneração. Mas, como compreendem, significa também amadorismo e, como tal, o profissionalismo humanitário em que se situam as maiores organizações, sejam portuguesas ou estrangeiras, é muito mais eficiente, porque desde as reflexões sobre o assunto, até à forma de trabalhar no terreno é mais competente e eficaz. Claro que um donativo de 10 euros não faz chegar a um potencial beneficiário 10 euros. Talvez cheguem 8 euros, mas serão mais bem empregues e mais eficazes do que os 10 directamente.
Consistência. Tudo na nossa vida depende da consistência. Ir ao ginásio uma vez não serve para nada. Fazer dieta um dia não serve para nada. Trabalhar apenas uma vez, ou de vez em quando, não serve para nada. O mesmo se passa com a ajuda humanitária, seja com o nosso trabalho, seja com donativos, se não forem consistentes servem de muito pouco. Seja 1 euro, 10 ou 100, as organizações só funcionam se houver consistência nos donativos. Mensal, e enquanto durar a vossa empatia.
Era o que eu queria dizer àquela rapariga com um coração tão bonito e que teve a coragem que a maioria não tem, ao olhar de frente os problemas: “Segura bem nessa empatia, não te esqueças do que estás a sentir, e anda aqui comigo que eu vou-te apresentar várias organizações que ajudam as pessoas mais vulneráveis aqui nas proximidades.”
Eu não dou uma esmola a um pobre, e sofro com isso. Mas dou o meu melhor para ser honesto com as minhas emoções acopladas às reflexões que de uma forma mais eficaz transformam empatia, em acção e resultados.
Empatia todos temos, e é um sentimento poderosíssimo; a maioria não sabe é usá-la.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras