A rouquidão da telefonia
Recebia beijos de fumo e dava beijos a papel.
A telefonia estava ligada, mal sintonizada. A Esperança entrou com a vassoura, descalça, para enxotar uma galinha para fora de casa. O pai, sentado num banco de madeira, de pernas abertas, a cabeça inclinada para o chão, os cotovelos apoiados nos joelhos, expeliu o fumo do cigarro, levantando o rosto, devagar, devagar, até que os olhos fitaram a filha, a Esperança. A pele escura do Alberto, vincada pelas rugas e queimada pelo sol, curtida pelo trabalho, contrastava com os olhos azuis. Apagou o cigarro na perna do banco e atirou a beata para a pia, soltando uma derradeira nuvem de fumo na direcção da filha, assim como uma espécie de carícia, talvez a única a que se permitia: envolver o rosto da Esperança com fumo da sua boca, servindo o tabaco como intermediário entre os seus lábios e a cara dela. Era o beijo possível, feito de fumo.
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