O facto de a Cimeira do Clima de 2023 (COP28) ser presidida por alguém que lidera uma petrolífera já foi classificado como “inadmissível”, algo tão impensável como um director de uma tabaqueira coordenar uma conferência da Organização Mundial de Saúde. Agora, uma investigação do diário britânico The Guardian mostra que o receio de ingerência, manifestado tanto por especialistas climáticos como por ambientalistas, afinal, não era descabido.
A petrolífera estatal dos Emirados Árabes Unidos teve não só acesso a emails enviados de e para o gabinete da COP28, mas também foi consultada acerca da melhor forma de responder a uma questão enviada por um órgão de comunicação social, avança o The Guardian.
Os Emirados Árabes Unidos vão acolher a próxima Cimeira do Clima, que decorre de 30 de Novembro a 12 de Dezembro no Dubai. Al Jaber, que também é director executivo da Abu Dhabi National Oil Company (ADNOC), foi escolhido para presidir àquele que é o principal palco de negociação climática das Nações Unidas. E não se afastou do cargo após a nomeação.
O gabinete da COP28 argumentou que o sistema de email utilizado era “autónomo” e “separado” do da petrolífera ADNOC. O The Guardian refere, contudo, que uma “análise técnica especializada mostrou que o escritório compartilhava servidores de email com a ADNOC”. Na última segunda-feira, dia 5 de Junho, a COP28 terá passado a utilizar um servidor diferente.
“Responsáveis dos Emirados Árabes Unidos e da Cimeira do Clima deveriam ter vergonha de si mesmos, mas o problema é que não têm. Pessoas assim vão continuar a colocar os próprios lucros à frente do planeta até ao fim. Elas devem ser removidas do processo da COP28 o mais rapidamente possível. Quanto mais cedo removermos os sociopatas do poder, mais cedo poderemos deter o colapso climático causado pelos combustíveis fósseis e salvar o que ainda pode ser salvo”, afirmou ao PÚBLICO o cientista climático Peter Kalmus, numa resposta enviada por email.
Joana Portugal Pereira, investigadora portuguesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Brasil, e autora líder do sexto ciclo de avaliação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa), também está preocupada com o caso. “O escândalo revelado esta semana expõe um claro conflito de interesses e levanta sérias preocupações sobre a credibilidade da COP28. A nomeação de Sultan Al Jaber como presidente da COP28 compromete a integridade e a imparcialidade da conferência”, disse ao PÚBLICO.
“As organizações não-governamentais de ambiente de todo o mundo têm denunciado a dificuldade que será conseguir assegurar uma liderança honesta em prol das energias renováveis e do clima na COP28. Esta situação é mais uma amostra do que é inadmissível nesta promiscuidade entre a condução de negociações de alto nível sobre alterações climáticas, no quadro da presidência de uma das mais importantes conferências das Nações Unidas, e a companhia petrolífera a que Sultan Al Jaber lidera”, referiu ao PÚBLICO Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero.
As declarações de Christiana Figueres
Pela primeira vez em cerca de três décadas, a conferência internacional criada justamente para discutir soluções para a crise climática vai ter como presidente alguém que lidera uma grande petrolífera. O sector dos combustíveis fósseis é um grande emissor de dióxido de carbono (CO2), um dos principais gases com efeito de estufa.
Além de director executivo da ADNOC, Al Jaber é ministro da Indústria e Tecnologia Avançada dos Emirados Árabes e enviado especial deste país para a energia e as alterações climáticas. A dupla posição desempenhada por Al Jaber tem merecido fortes críticas de grupos ambientalistas, activistas climáticos e até figuras de proa da negociação climática, como a diplomata porto-riquenha Christiana Figueres.
Em declarações ao The Guardian, em Maio de 2023, Christiana Figueres classificou como “perigosa” a forma como os Emirados Árabes estavam a gerir a organização da COP28. A diplomata mostrava-se preocupada com a justaposição entre os interesses do sector fóssil e a acção climática.
As declarações de Figueres têm um peso muito importante na esfera internacional. Foi ela quem liderou as negociações que culminaram no famoso Acordo de Paris, em 2015, quando estava à frente da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês). Nesse âmbito, o The Guardian contactou o gabinete da COP28 para obter uma reacção à afirmação de que a abordagem adoptada pelos Emirados Árabes era “perigosa”.
As respostas obtidas pelo diário britânico continham uma informação inesperada. No corpo das mensagens recebidas pelo The Guardian, podia-se ler “Classificação da ADNOC: interna”, apesar de o email não mencionar a petrolífera. Foi esta pista que levou o diário britânico a estabelecer uma ligação directa entre o gabinete da COP28 e a petrolífera dos Emirados Árabes Unidos.
“Absoluto escândalo”
Quando questionado pelo The Guardian por que razão as respostas do email continham o texto “Classificação ADNOC: interna”, o gabinete da COP28 afirmou que “recolheu informações de vários especialistas no assunto sobre emissões, incluindo a ADNOC”. E, como consequência, a marca de classificação interna da petrolífera acabou por se tornar parte da cadeia de mensagens.
“Isto é um escândalo absoluto. Uma empresa de petróleo e gás encontrou uma forma de entrar no núcleo da organização encarregada de coordenar a eliminação gradual de petróleo e gás. É como ter uma multinacional do tabaco a supervisionar o trabalho interno da Organização Mundial de Saúde”, afirmou a eurodeputada francesa Manon Aubry, citada pelo The Guardian.
Neste momento, decorre em Bona, na Alemanha, uma conferência que serve de antecâmara para a COP28. O encontro, que tem um carácter mais técnico do que político – estão presentes sobretudo cientistas e especialistas, e não políticos ou chefes de Estado –, está a desenrolar-se num ambiente descrito como de grande tensão.
A crispação deve-se precisamente ao desconforto em relação à escolha de Ahmed Al-Jaber. “Como ouvi por aqui nos corredores, não podemos esperar que os culpados pelo problema também o resolvam ('you can’t ask the one to blame, to fix it')”, conta a cientista portuguesa Joana Portugal-Pereira, que está em Bona a participar na conferência, que decorre até 15 de Junho.
“Esperemos que não seja um ano perdido. O combate às alterações climáticas é uma urgência que exige acção imediata e decisiva, e não podemos permitir que interesses empresariais comprometam os nossos esforços colectivos para um futuro sustentável”, afirma a investigadora.
Num artigo de opinião, publicado esta semana no PÚBLICO, Joana Portugal-Pereira sublinhava a urgência de pararmos de fazer “promessas vazias para um futuro distante”. É hora de agir, avisava.
“Se a humanidade não levar a sério a emergência climática, podemos perder tudo. Não temos nada sem uma Terra habitável. Nenhuma quantidade de riqueza vai fazer qualquer diferença. Não temos mais tempo para asneiras como esta”, alerta o investigador Peter Kalmus.