A suspensão dos médicos que denunciei, uma vitória para o SNS

A suspensão de quem denunciei não se trata de uma vitória pessoal. A suspensão representa uma pequena vitória, ainda que só provisória, para todos os utentes do SNS.

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Lembro-me do quanto me senti sozinha nos dias seguintes a apresentar queixa, quando ainda não era pública. Lembro-me de ainda estar a trabalhar e de os ver sorrir e comentar sobre a situação em jeito de gozo, quando, numa primeira fase, tiveram conhecimento da queixa. Lembro-me do dia em que fui posta de parte e impedida de trabalhar normalmente e só podia desabafar com alguns colegas dos cuidados intensivos, colegas esses que estão cientes de tudo (até porque normalmente recebem os doentes com complicações cirúrgicas mais graves) e que só nunca tiveram a firmeza de se impor ou denunciar por medo de um sistema que habitualmente não protege quem denuncia.

Há dois meses, quando a queixa se tornou de conhecimento público, foram várias as opiniões declamadas aos quatro ventos, vindas de todo o lado, de profissionais de saúde a pessoas de outras áreas mas que acreditam na importância dos serviços públicos de saúde. Algumas eram favoráveis à minha atitude, outras nem tanto. Mas a maioria desconhecia os factos ao pormenor para poder julgar convenientemente. E claro que muitas delas me caíram mal e me magoaram. Mas as emoções só ganham as proporções que lhes damos.

Não deixa de ser curioso que as intolerâncias alimentares normalmente aconteçam por baixa quantidade de enzimas que permitam digerir um dado macronutriente. A intolerância na vida é então falta de enzimas de tolerância? E quais são elas? O que faz de nós verdadeiramente sensíveis é perceber e digerir, com enzimas de tolerância e respeito, a realidade do resto do mundo sem acreditar a priori que a nossa é melhor ou mais certa.

É fazer um esforço para perceber quando os dogmas tentam ser os ditadores do reino e acreditar piamente que só não toleramos o intolerável e que esse é o cume de uma montanha verdadeiramente mais alta do que alguns conseguem escalar. E eu escalei e tenho tentado continuar a escalar, mesmo nos dias mais complicados.

Fomos feitos para conseguir ser extraordinariamente bem-sucedidos em tudo na vida, mas o que assistimos diariamente é a uma mão cheia de desgraças em que o ser humano está quase sempre na vanguarda da ignorância, desrespeito, intolerância e da falta de sentido para a sua vida.

Neste processo, dei-me conta de que o problema nunca foi eles falharem. Errar é humano, estamos todos sujeitos a isso. O problema é não admitirem os erros, não falarem abertamente sobre eles e não se informarem devidamente os doentes sobre tudo o que lhes acontece. Porque eles merecem e têm direito à informação.

Sinto que há muito que deixaram de se tentar colocar na pele do outro. Que há muito que deixaram de se perguntar: “Se fosse eu ali, como queria que me tratassem?...” Mas a falta de emoção perante as consequências nefastas que os nossos erros podem ter na vida de um doente é o que mais me choca. É suposto um médico ficar abalado quando um doente que tentamos tratar sai lesado. É suposto fazer o luto por cada doente que morre. Não é suposto desvalorizar porque “é mais uma vaga”, como em tempos eu e outros profissionais ouvimos um outro suposto profissional dizer, perante uma verificação de óbito.

Sou talvez demasiado sensível a tudo isto. Mas, mais uma vez, tenho que ser forte porque ser assim não me vai levar a lado nenhum, as flores de estufa morrem quando de lá saem e enfrentam em condições adversas e eu tenho que ser mais capaz. Mas e se eu não quiser? E se eu quiser continuar a ser fiel à minha essência e a viver no meu próprio universo paralelo em que sou feliz mas não deixo de sofrer e de absorver com intensidade tudo o que me rodeia? “Então vais sofrer para todo o sempre.” Mas se sofrer for a verdadeira maneira de ser empática com o outro, então assim seja. Vou ser para sempre uma inconformada e vou ter sempre vontade de mudar a realidade que me rodeia para melhor.

O modo como se encara os problemas, que nunca deixarão de surgir, é que faz a diferença e por esse mesmo motivo, mais do que tudo, estou contente. Contente por sentir que, de algum modo, posso ajudar, nem que seja apenas uma pessoa, a ser mais bematendida e a ter direito a que a tratem com respeito e dignidade quando procurar serviços de saúde públicos. Se para isso foi preciso sofrer umas quantas represálias na pele, ouvir opiniões escusadas e ser olhada de lado por meia dúzia de seguidores do sistema, eu aceito. Se no fim, o meu propósito de salvar mais vidas ou tratar doentes devidamente, com brio e com ética profissional, for concretizado.

A suspensão de quem denunciei não é uma vitória pessoal. A suspensão representa uma pequena vitória, ainda que só provisória, para todos os utentes do SNS, que merecem ser tratados com respeito e dignidade, em qualquer serviço de qualquer cidade que procurem. A sanção é e será um abre-olhos para todos os médicos que acham que ninguém é punido e que as leges artis são sempre contornáveis ou maleáveis.

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