Olhar sem interrupções
Não tiraria os olhos da boneca, ao contrário do que fizera com a sua mãe, pousaria nela os olhos, sem interrupção.
A Sãozinha estava maravilhada com a boneca de papel, olhava-a de todos os ângulos e achou-a tão bonita que a quis baptizar com o nome da sua mãe, Noémia. Repetiu o nome várias vezes. Na verdade só o ouvira na boca do pai, pois para si era simplesmente "mamã". Noémia arranhava-lhe um pouco a garganta, não era, claramente, o mesmo que "mamã", especialmente porque "Noémia" era um nome que vinha agarrado à voz do pai, um nome com hálito de bagaço, mas enfim, que fazer?, era o nome da sua mãe, seria também o nome da boneca de papel, a sua Noémia, que haveria de acarinhar para sempre, pensava a Sãozinha com a ingenuidade típica da criança que de repente se sente extasiada, haveria de acarinhá-la pelo resto dos seus dias. A alegria não só eliminava a aspereza da vida sombria, como era a sua, como a fazia acreditar na eternidade. Uma das condições preliminares para que surja a expressão "para sempre" é sentir paixão, essa perturbação emocional que permite abraçar momentaneamente conceitos absolutos como o infinito e a eternidade, por isso naquele instante a Sãozinha era feliz para sempre, como o final dum conto de fadas. Mas de repente, uma sombra atravessou-lhe o espírito, lembrou-se do destino da mãe, levada pelas águas, mas nem por isso se deixou abater, pelo contrário, agora faria diferente, não tiraria os olhos da boneca, ao contrário do que fizera com a sua mãe, pousaria nela os olhos, sem interrupção, pelo menos enquanto pudesse, apenas se permitindo intervalos como as inevitáveis horas de sono ou as aulas em que aprendia a ser criada ou o banho semanal ou as refeições.
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