Será que a moratória dos Açores defende mesmo o seu mar profundo?
“Açores dão luz verde a moratória até 2050 sobre mineração do mar profundo.” Pois é... Parece o oposto do que se pretende, mas a verdade é que este título não parece defender de forma assim tão clara a biodiversidade biológica marinha nas águas açorianas, no entanto, e enquanto cientista, recuso-me a aceitar que devemos estar orgulhosos deste feito, por muito boas intenções que tenham sido usadas.
Ora vejamos: não é novidade que posições extremadas nunca nos levaram a uma saudável discussão de qualquer ponto de vista. Proibir o que quer que seja, de qualquer modo, ainda que o texto venha formatado num bonito tom azul-mediterrâneo, deixa-me sempre na dúvida sobre se, mais uma vez, não estará em cima da mesa uma vontade enorme de assumir que Portugal foi pioneiro a fazer algo.
Chegámos a um ponto em que copiar quem faz bem não chega, temos de ir mais longe, e ser os primeiros a fazer algo grandioso. No entanto, depressa e bem há pouco quem e acho que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores se apressou a aprovar uma resolução que não compreende, mas que acredita que defende os interesses na região autónoma... Mas será que defende?
Eu não duvido de que os açorianos adorem o seu mar, mas eu sou filho e neto de pescadores, os meus tios e primos andam (provavelmente ainda esta madrugada foram lançar tróis, covos ou redes!) na faina do mar em Angeiras, Matosinhos, sou orgulhosamente geólogo e por isso duvido de que qualquer habitante dos Açores adore mais o seu mar do que eu, o nosso mar!
Se eu fosse também açoriano, estaria ainda mais irritado com esta aprovação, acredito que bem-intencionada, mas que se assume como um tiro muito ao lado. Defendem as ONG que levaram a proposta à assembleia legislativa que “... No início, era uma resolução sobre moratória sobre mineração em mar profundo e áreas marinhas protegidas, mas, no decorrer de uma discussão de umas três horas, percebeu-se que o projecto dificilmente seria aprovado se mantivesse a parte das áreas marinhas protegidas”.
Ora, eu adorava entender a formação ou experiência que o painel de especialistas possui em georrecursos, em prospecção e pesquisa, ou geologia marinha. Pois manter toda uma proposta destas e ir retirando ou adicionando chavões como “áreas protegidas”, “prospecção” ou “pesquisa”, se calhar, digo eu (e se calhar meio Portugal), carece de uma reflexão, explicação e entendimento superior a três horas.
Lamento imenso ter de ser um geólogo a explicar, de forma não técnica, aquilo que orgulhosamente propuseram à assembleia, mas, proibir, até 2050 o estudo (sim, o estudo, pois prospecção significa procura, o termo teve a sua origem nas geociências mas actualmente qualquer agente imobiliário conseguirá explicar o seu significado: pesquisa, claro está, significa estudo!) dos fundos marinhos açorianos não dignifica em nada a postura preservacionista que se pretende ter para a biodiversidade marinha.
A prospecção e pesquisa dos fundos oceânicos poderia ser feita à distância, de forma não-invasiva, com recurso a robots marinhos, georradares e sonares que ajudariam os cientistas, hidrogeólogos e geólogos marinhos entre outros, a ampliar o conhecimento das formas de relevo presentes nos fundos oceânicos ao largo dos Açores e, desta forma, ajudar a proteger a população em caso de tsunamis, por exemplo, entre muitas outras formas de utilizar o conhecimento dos fundos oceânicos. Conhecimento esse que foi, curiosamente e, acredito eu, de forma negligente, agora vedado.
Nem toda a prospecção e pesquisa termina em exploração de recursos, muita dela ajuda a cartografar o fundo oceânico com mais detalhe do que nunca: a definir montes submarinos, plataformas e taludes continentais, planícies abissais, dorsais médias oceânicas e fossas marinhas, a acompanhar vulcões activos, a monitorizar alterações sísmicas nos fundos oceânicos, a acompanhar mudanças ambientais e climáticas, acompanhar o transporte de sedimentos, a gerar informação crucial para optimizada gestão dos stocks de peixes e até a auxiliar a previsão de tsunamis.
Parece que Shin Tani tinha razão: “Nós sabemos mais sobre a topografia de Marte do que sobre o fundo do oceano na Terra, [embora os oceanos] tenham um impacto directo muito maior na nossa vida quotidiana do que a superfície de Marte”.
Para terminar esta viagem marinha, fica assim condicionado o estudo dos fundos marinhos ao largo dos açores até 2050, altura em que se conduzirá um estudo (então proíbe-se o estudo até que seja feito um estudo?!) que ajudará a perceber se a mesma cessará ou se prolongará. Enjoados com esta agitação marítima? Compreendo!
Em suma, que o bom senso e a partilha de informação entre equipas multidisciplinares de profissionais onde a ética e a experiência profissional aliada ao conhecimento científico auxiliem, de futuro, a evitar situações como esta, em que não se faz ideia do que se está a proibir quando a intenção é impor uma posição extremada. A desculpa da defesa dos oceanos não pode servir para passar um atestado de incapacidade técnica e científica a quem se lembra de “optimizar” em três horas uma proposta que nunca foi equilibrada e que nunca primou pela compatibilidade de interesses a proteger.
Por favor, não se lembrem dos geólogos apenas quando há sismos e tsunamis. Somos muito mais do que isso e se não se apercebe do nosso trabalho quotidiano é porque está a ser bem feito!
Júlio Santos, geólogo, mestre em Geomateriais e Recursos Geológicos, responsável técnico de Pedreiras, tesoureiro da Associação Portuguesa de Geólogos (se aguentaram até aqui, agora vem o melhor!) e orgulhosamente neto, sobrinho, primo e filho de pescadores!