“Deve-se cobrar ao Brasil a redução da desflorestação e o combate à impunidade”

A UE deve manter-se alerta para que o Presidente Lula da Silva cumpra as promessas de proteger povos indígenas e travar destruição da Amazónia, diz directora da Human Rights Watch no Brasil.

Foto
"Para a questão dos Yanomami e outros povos indígenas ameaçados, é preciso a presença do Estado", diz Maria Laura Canineu Nuno Ferreira Santos
Ouça este artigo
--:--
--:--

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Lula da Silva foi eleito com a promessa de travar a destruição da Amazónia, a violência contra os povos indígenas, e ser um líder na acção climática. Mas tem de governar com um poder legislativo muito conservador, que porá obstáculos no seu caminho. “Mas mesmo com esse Congresso, que parece estar indo na mesma direcção que o Governo de Jair Bolsonaro, o Presidente Lula deveria ser capaz de manter medidas fortes de combate ao desmatamento”, afirma a directora da Human Rights Watch no Brasil, Laura Canineu, com quem o PÚBLICO falou numa passagem por Lisboa.

O Supremo Tribunal Federal vai retomar esta quarta-feira, 7 de Junho, o julgamento do chamado “marco temporal”. O Governo de Lula da Silva espera que seja derrotada a tese do marco temporal. Mas, entretanto, o Congresso está a mover-se no sentido contrário. O que vai prevalecer?

A Human Rights Watch espera que o Supremo Tribunal Federal não frustre as expectativas dos povos indígenas de ver reconhecido o seu direito fundamental às terras que tradicionalmente ocupam. Esperamos que expurgue de uma vez por todas o entendimento do marco temporal, que determina que os povos indígenas só têm direito ao reconhecimento do seu território se provarem que estavam lá presentes na data da promulgação da Constituição brasileira de Outubro de 1988, ou que nessa data tinham um conflito possessório sobre a terra.

Entendemos que a tese do marco temporal, ao impor uma data arbitrária, viola os direitos fundamentais dos povos indígenas previstos na Constituição brasileira, e nas declarações internacionais. O direito à terra é fundamental para o respeito dos direitos dos povos indígenas, não tem como desassociar a condição indígena do seu território.

Esperamos que o Supremo evite a manobra de aprovação na Câmara dos Deputados de um projecto de lei que estabelece o marco temporal.

E se houver uma conclusão no processo legislativo antes de haver uma decisão no Supremo Tribunal, o que é que se sobrepõe?

Este julgamento é sobre uma terra específica, mas a decisão vai orientar a demarcação de terras indígenas no Brasil. Se o Supremo decidir que a tese do marco temporal é inconstitucional, e se o Congresso quiser legislar, pode ser um imbróglio jurídico sério.

A Human Rights Watch acompanha a crise humanitária dos ianomamis, com a invasão do território pela exploração ilegal de minérios?

São um povo que tem sido vitimado há décadas por uma violência absurda por parte dos garimpeiros ilegais e redes criminosas.

Este Governo criou pela primeira vez o Ministério dos Povos Originários, e elegeu uma líder indígena como chefe da Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Desde o começo do ano fez uma série de operações importantes para a retirada dos garimpeiros do território ianomami e isso tem sido acompanhado por violência.

Foto
"A Human Rights Watch espera que o Supremo Tribunal Federal não frustre as expectativas dos povos indígenas de ver reconhecido o seu direito fundamental às terras que tradicionalmente ocupam", diz Laura Canineu Nuno Ferreira Santos

O problema dessas operações é que o Estado tira alguns garimpeiros, e quando sai, toda a ilegalidade volta. Para a questão dos ianomamis, e de outros povos indígenas ameaçados, é preciso a presença do Estado, fortalecer as agências ambientais e a Polícia Federal para prevenir a criminalidade e investigar quem está cometendo crimes lá.

E o Governo tem condições para reforçar essa presença? O Congresso retirou poderes aos ministérios dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente…

Aumentou em mais de 200% o número de multas ambientais, em comparação com o mesmo período na época de Bolsonaro. Houve a retoma do plano de combate à desflorestação da Amazónia, a retoma do fundo Amazónia. O desmatamento reduziu-se quase 70% em Abril, comparado com o ano anterior. É uma indicação positiva, embora ainda insuficiente para analisar se haverá uma redução consistente do desmatamento.

Mas o Congresso Nacional retirou ao Ministério dos Povos Indígenas a atribuição de demarcação dos territórios e ao Ministério do Meio Ambiente um instrumento muito importante para combater o desmatamento, que é o Cadastro Ambiental Rural. Foram manobras para esvaziar os poderes dos ministérios e o Governo Lula foi bastante criticado por ter negociado essas atribuições.

É um Congresso conservador, muito alinhado com os interesses do agro-negócio. Mesmo com esse Congresso, que parece estar indo na mesma direcção do Governo Bolsonaro, o Governo do Presidente Lula deveria ser capaz de manter medidas fortes de combate ao desmatamento.

Esperamos que o executivo possa continuar lutando para cumprir as promessas de protecção dos povos indígenas, redução do desmatamento e promoção dos direitos humanos.

Não corremos o risco de termos uma espécie de tempos de Bolsonaro versão light?

O risco existe, é muito forte. Por isso é tão importante a vigilância da comunidade internacional. Entendemos que a União Europeia, por exemplo, não pode ratificar o acordo Mercosul-UE se o Brasil não mostrar progresso efectivo na redução do desmatamento e no combate à impunidade por actos de violência e criminalidade contra os defensores da floresta.

É importante que a UE se mantenha vigilante, para que Lula possa realmente cumprir o que prometeu, em relação aos povos indígenas e a ser um líder na maior crise que a humanidade está vivendo, que é a crise climática.

Passou um ano desde o assassínio do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Philips no vale do Javari por uma rede de pesca ilegal. Isto poderia voltar a acontecer hoje?

O assassinato do Dom foi um bastante dramático, mas não surpreendente, porque existia uma política antiambiental e antidireitos humanos do Governo Bolsonaro. Hoje pode-se dizer que estão a ser tomadas medidas. Se não me engano, estão cinco pessoas presas. Tendo em vista a cobertura internacional, o Estado está fazendo a sua parte para responsabilizar as pessoas que cometeram esse grave crime.

Só que essa não é a regra. A regra em relação a crimes contra defensores é a impunidade. Nos últimos dez anos, a Comissão Pastoral da Terra apontou 300 assassínios de pessoas no contexto de conflitos pelo uso da terra e pelos recursos naturais.

Raramente há punições por este crime, um julgamento que leve à identificação das redes criminosas que estão por trás dessa violência e da destruição ambiental. Também é muito raro haver investigação quando há ameaças e muitas das mortes são precedidas de ameaças.

Deve ser cobrada ao Brasil a redução do desmatamento e protecção da Amazónia e outros biomas, mas também o combate à impunidade.

Só no ano de 2022, que foi quando eles morreram, mais 34 pessoas foram assassinadas no contexto de conflitos pelo uso da terra. Nove desses 34 eram indígenas. Hoje sabemos o que aconteceu com o caso do Dom e Bruno. Mas o que é que aconteceu nesses outros casos? Não sabemos.