Luke O’Brien: “Extrema-direita já usa Inteligência Artificial para desinformar e radicalizar”
Especialista norte-americano alerta para o risco da desinformação e para a forma como a extrema-direita utiliza a tecnologia para dividir o país e minar a confiança na democracia.
Desde 2021 que Luke O’Brien, especialista do Shorenstein Center, na Harvard Kennedy School, procura compreender o que motivou o assalto ao Capitólio e a forma como o fenómeno Trump é exportado para outras geografias, reflectindo no que aconteceu este ano no Brasil.
Para o também jornalista, que escreveu para jornais como o The New York Times ou a The Atlantic, há uma “máquina”, associada à extrema-direita, montada que visa minar a democracia, usando a desinformação e a Internet como armas. “A [democracia] esteve mesmo por um fio e continua bastante ameaçada. Porque a máquina continua lá e continua a funcionar.” A dois anos das próximas eleições nos EUA, o especialista olha com cautela para o que pode vir aí: “Só estão novamente à procura da pessoa certa”, explica ao PÚBLICO.
Para O’Brien, a forma como os radicais utilizam a tecnologia para fazer passar a sua mensagem deve ser analisada com atenção, particularmente o que pode ser feito com a Inteligência Artificial. “Já usam a IA para automatizar a desinformação e radicalizar as pessoas ou incentivar à violência. Fundamentalmente, descredibilizar o sistema democrático. E isso já acontecia, numa escala muito ampla, mesmo antes de existir a IA.” O objectivo é atacar a verdade e o sistema democrático, numa espécie de guerra cultural. “Não há democracia sem verdade e sem percepção dos factos”, avisa.
Passou muitos meses a tentar perceber o que esteve por trás da invasão ao Capitólio, em Janeiro de 2021. Entretanto, no Brasil, no início deste ano, aconteceu algo semelhante. Quais são os ingredientes para este tipo de acontecimentos?
Medo, mentira e redes sociais. O medo produz raiva. Se mentirmos a pessoas que estão assustadas e com medo, consegue-se fazer o que se quiser. Tivemos quatro anos da presidência de Donald Trump, em que os seus seguidores estavam tão habituados a ouvir o que fazer, que se criou uma verdadeira forma de culto pessoal autoritário. E o próprio Partido Republicado embarcou nesse sentido.
Depois de quatro anos da presidência de Donald Trump, temos extremistas que, entretanto, foram eleitos e o Partido Republicano também se radicalizou. E isto tudo aconteceu graças ao fenómeno Trump. Estas pessoas já existiam antes da chegada de Donald Trump ao poder, mas estavam à margem.
É justo responsabilizar apenas Donald Trump por isto tudo?
Justo até pode ser. Mas não é inteiramente correcto. Porque a verdade é que existe uma rede ligada à extrema-direita que estava a crescer em segredo ao longo de vários anos. Um movimento antidemocrático que estava a marinar já há décadas e que apenas foi tornado visível graças a Trump.
Funcionou, então, como uma oportunidade?
Totalmente. Ele ganhou a nomeação e soube como chegar às pessoas, falando de uma forma acertada. Mas a máquina já tinha sido criada. É uma forma de fascismo americano e estava a ser desenvolvida há vários, vários anos. Financiada por multimilionários, próximos das alas mais radicais da direita, que têm apoiado projectos anti-imigração. Donald Trump foi, assim, como um catalisador para tudo isto e foi ele próprio integrado neste tipo de movimento. O que eu acho que aconteceu é que eles colocaram as cartas na mesa muito cedo.
Se tivesse aparecido alguém mais estratégico do que Donald Trump, podia mesmo ter sido o fim. A democracia nos EUA podia mesmo ter chegado ao fim.
Houve mesmo esse risco?
Esteve mesmo por um fio e continua bastante ameaçada. Porque a máquina continua lá e a funcionar. Só estão novamente à procura da pessoa certa. E a verdade é que Donald Trump abriu caminho para isso. Porque foi capaz de radicalizar muito mais pessoas e esse foi mesmo o maior contributo que fez para a causa. Sondagens recentes dão conta de que cerca de 70% dos votantes no Partido Republicano ainda acreditam que Joe Biden roubou as eleições.
Desde 2016 que acompanho o trabalho que pessoas radicalizadas, ligadas à extrema-direita, fazem nas redes sociais e na Internet. E a verdade é que, quando colocam um dado propositadamente falso a circular, pouco tempo depois, várias pessoas próximas do Partido Republicano vão estar a propagar essa desinformação. No fundo, o que aconteceu no dia 6 de Janeiro foi resultado de todos estes factores.
Trump continua à espreita. Podemos ter o antigo Presidente dos EUA de volta ou até algo ainda mais perigoso?
Vou começar pela segunda parte. Acho, mas acho mesmo, que pode vir algo ainda pior do que Donald Trump. Um Trump ainda mais eficaz que seja capaz de ocultar o poder.
Um pouco como a Le Pen, talvez? Que se tem apresentado como alguém moderada, mesmo encerrando uma agenda extremista.
Sim. Exactamente! Há uma grande parte do Partido Republicano que esteve envolvida em actividades antidemocráticas e que, por não terem resposta ao multiculturalismo do país, continuam a caminhar para a direita. Cada vez mais. Se Trump pode voltar? Honestamente, acho que não. Por duas razões. A primeira é que já fez demasiadas coisas más e assustou muitas pessoas que o apoiaram. Mas a razão principal é ele ter perdido as eleições anteriores. Ou seja, é alguém que já foi derrotado. E o fascismo não apoia derrotados. Espero estar certo porque, se ele for eleito novamente, a democracia nos EUA chega ao fim.
Voltando ao medo de que fala em cima. Deve-se a quê?
Um dos aspectos que mais me chocaram ao longo das minhas pesquisas foi perceber a quantidade de pessoas que partilham valores racistas. Há mesmo muitos racistas nos EUA. O país deixou de ser composto maioritariamente por pessoas brancas e cristãs e é hoje um país claramente marcado pelo multiculturalismo. E há medo e é o medo é o combustível desta máquina de que temos vindo a falar. A própria comunidade policial, por exemplo, foi radicalizada neste sentido.
Tudo aquilo que está a descrever faz recordar o que aconteceu no Brasil de Bolsonaro. Como é que estes movimentos se tornam globais e parecem eficazes em diferentes culturas?
Temos, inevitavelmente, de falar da Internet e das redes sociais. Estas tecnologias acabaram com as fronteiras que existiam. Sempre houve uma tendência transnacional dentro do movimento da extrema-direita. David Duke, por exemplo, viveu em Moscovo durante muitos anos e sempre houve uma ligação estreita entre a direita radical norte-americana e os fascistas na Rússia.
Quando estas pessoas aprenderam a utilizar a Internet, e muitas delas mais cedo e de uma forma mais eficaz do que a maioria da população, conseguiram passar a utilizar a tecnologia para os seus interesses. Fazem da Internet, das redes sociais a principal arma para motivar acontecimentos como o 6 de Janeiro nos EUA ou o 8 de Janeiro no Brasil.
E o que, na verdade, se pode fazer para combater isso? As echo chambers parecem cada vez mais eficazes. É possível para alguém que, entrando numa dessas bolhas, consiga sair?
É muito complicado. É mesmo muito complicado. Não sou um especialista, mas era preciso uma acção das autoridades governamentais para desradicalizar as pessoas. Deve passar por um processo individual, e a sociedade não pode ter uma atitude julgadora. Mas não há um modelo para isso, para responder a movimentos amplos e alargados de pessoas que se radicalizam. Mas é muito complicado retirar as pessoas dentro destas bolhas. Não tenho mesmo uma visão optimista, pelo menos para aquilo que se passa nos EUA.
Numa entrevista ao nosso jornal, e falando sobre os riscos da desinformação associados ao desenvolvimento da Inteligência Artificial, Noam Chomsky disse que a única forma de combater esse problema é mesmo com educação.
Sim, a literacia é importante e a educação. Mas uma educação correcta, porque grande parte destas pessoas que se radicalizam são sujeitos que possuem grandes níveis de educação. São pessoas inteligentes. O problema é a falta de reacção crítica à informação. Saber interpretar aquilo que se recebe. Saber escolher entre uma fonte má e uma boa fonte de informação. E isso não se ensina nas escolas norte-americanas. Não se aprende a pensar nem a avaliar a informação de uma forma correcta. E há um risco maior associado à educação.
De que forma?
A extrema-direita tem penetrado nas escolas um pouco por todo o país de forma estratégica. Minando o sistema educativo pode-se facilmente manipular as pessoas. Sabem perfeitamente o que estão a fazer e estão a fazer há várias décadas. Estamos a enfrentar uma guerra muito complexa sobre a verdade e o que é a verdade. E não conseguimos ter democracia sem verdade e sem percepção dos factos.
Estamos ainda a perceber os riscos do desenvolvimento de ferramentas como as redes sociais e ao mesmo tempo vemos o crescimento substancial da IA. Qual é o risco destas novas tecnologias?
Tudo o que precisas para convencer alguém que não pensa de forma correcta é a simulação. E é isso que a extrema-direita tem feito. Tal como fizeram com as redes sociais, muito antes de nós percebermos o seu potencial, estão a fazer agora com a IA. Já usam a IA para automatizar a desinformação e radicalizar as pessoas ou incentivar à violência. Fundamentalmente, descredibilizar o sistema democrático. E isso já acontecia, numa escala muito ampla, mesmo antes de existir a IA. Tem sido através destas tecnologias que radicalizam as pessoas.
E as redes sociais não têm feito o que é necessário para mitigar estes problemas.
Não, completamente. Há uma responsabilidade muito grande na mão destas empresas. Sabem o que se passa, fazem dinheiro com isso e permitem que isto aconteça. Além do dinheiro, empresas como o Facebook e o Twitter não querem enfrentar as mesmas pessoas que estão a ameaçar a nossa democracia. Ao investigarem o que se passa no interior das suas plataformas, podem ser acusados, pelos mais radicais, de estarem a ameaçar a liberdade de expressão.
Há ainda outra preocupação que tenho. Que é a identidade de algumas empresas de tecnologia saídas do Silicon Valley. Muitas delas são controladas por pessoas com ligações claras à extrema-direita. Um exemplo óbvio acontece com a comunidade de criptomoedas. E isso acontece porque estão a tentar contornar o sistema bancário. E, para estas pessoas, para os radicais de extrema-direita, quem é que controla o sistema bancário? Pois. A criptomoeda é assim uma forma de contornar este sistema e um alegado poder da comunidade judaica. E isso acontece com muitas das plataformas que usamos nos dias de hoje. Quem as controla tem uma posição totalmente antidemocrática. Sentem-se, mesmo, ameaçados pelo sistema que existe.