Seca: Espanha e Portugal querem tirar mais água do Guadiana e a pressão aumenta

Agricultores espanhóis “exigem” que o Governo altere o Acordo de Albufeira com Portugal para permitir uma utilização “mais flexível” da água do Guadiana. E o Verão ainda não chegou.

Foto
Vista aérea da Ponte Internacional do Guadiana que une Portugal e Espanha Vasco Celio/Arquivo
Ouça este artigo
--:--
--:--

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Com a seca severa e extrema a entrar pelo Sul, a disputa entre Portugal e Espanha pela água do Guadiana está cada vez mais tensa. Para servir a região de Huelva, os espanhóis querem reforçar a captação de água que instalaram em 1970 na confluência do rio Chança com o Guadiana, e assim servir o regadio intensivo, a indústria mineira, o turismo e o consumo humano. No mesmo local, mas junto à margem direita do rio Guadiana, os portugueses também já anunciaram um projecto para um sistema de captação de água que vai reforçar o abastecimento a regadios intensivos e para consumo humano no sotavento algarvio. Há água no Guadiana para tanta procura?

No início de Maio, a Comunidade de Regantes de Palos de la Frontera (CR Palos), da região de Huelva, expressou em nota de imprensa, a que o PÚBLICO teve acesso, a “enorme preocupação do sector dos frutos vermelhos" pelas restrições no acesso à água. O corte de 25% que foi imposto ao volume de água que recebem para rega “colocou muitos empresários agrícolas em situação difícil” e a produção de hortícolas e frutícolas em risco, refere o comunicado.

Os últimos dados divulgados pela Confederação Hidrográfica do Guadiana (CHG) no dia 29 de Maio vieram reforçar as preocupações. As duas albufeiras (Chança e Andévalo) que suportam o maior volume de débitos para consumo na região de Huelva e que no seu conjunto têm uma capacidade máxima de armazenamento de quase mil hectómetros cúbicos (hm3) apresentam neste momento cerca de 400hm3 (40%). E o Verão ainda não chegou.

O cenário crítico ditado pela escassez de recursos hídricos confronta as orientações do novo Plano Hidrológico das bacias dos rios Tinto, Odiel e Piedras, elaborado para o período 2022-2027 e que inclui as barragens do Chança e Andévalo. O documento quantifica as necessidades de água para consumos urbano, agrícola, industrial e turístico, que no conjunto somam um total de 474hm3 por ano: 50,11 para abastecimento urbano, 360,6 para irrigação, 53,67 para indústria, 2,95 para uso turístico e recreativo, 4,31 para pecuária e 2,5 para outros fins, um volume superior ao que neste momento as bacias hidrográficas armazenam.

Colocado perante um quadro de escassez, a CR Palos no âmbito da sua campanha “A seca pode ser evitada (LaSequíaSePuedeEvitar)”, solicitou ao Governo regional de Andaluzia o arranque das obras na tomada de água de Boca-Chança para “extrair caudais do rio Guadiana” que "neste momento se perdem no mar quando poderiam ter inúmeros usos”.

Foto
Barragem do Alqueva Nuno Ferreira Santos

Afinal, Boca-Chança nunca mais parou

A organização de regantes de Huelva “exige ainda a reactivação das obras de aumento da capacidade de bombeamento a partir da captação de água, frisando que este sistema tem “actualmente capacidade para bombear 63hm3”. No entanto, o projecto que prevê o reforço na captação de água “permitiria adicionar 12hm³, por ano, até atingir os 75hm³ estabelecidos no plano de emergência da bacia” para tornar “mais flexível” a utilização da água do Guadiana, salienta a CR Palos.

No final da década de 1970, foi construída a captação de Boca-Chança no cruzamento entre os rios Chança e Guadiana, mesmo no limite de fronteira entre os dois países ibéricos. Inicialmente a estrutura foi projectada para garantir água à região de Huelva.

A Convenção de Albufeira acordada em 1968, veio estabelecer, nas relações luso-espanholas, mecanismos de protecção das massas de água, dos ecossistemas aquáticos e terrestres e o uso sustentável dos recursos hídricos. Mas apesar de o acordo entre os dois países ter previsto que a captação do Chança só funcionaria até à conclusão da barragem de Andévalo que foi inaugurada em 2003, o sistema mantém-se ininterruptamente em funcionamento sempre que as marés se encontram em baixa-mar.

Quando ocorrem as situações de preia-mar, a água salgada sobe o rio Guadiana até Mértola, inviabilizando as captações para Huelva. A estrutura instalada tem capacidade para bombar 63hm3, um volume de água que a CR Palos pretende ver aumentado para os 75hm3.

Foto
Canal de Bocachança que abastece a região de Huelva, em Espanha Miguel Manso

Manter o rio vivo

O presidente da Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas de Alqueva (EDIA) forneceu ao PÚBLICO os volumes de água turbinados para jusante a partir da albufeira de Pedrógão, uma estrutura que funciona como contra-embalse da barragem de Alqueva, para devolver a montante (albufeira de Alqueva) e durante a noite praticamente o mesmo volume de água que foi utilizado na produção de energia eléctrica.

Entre Janeiro a Maio os volumes lançados a partir da albufeira de Pedrogão para o troço do Guadiana internacional, somaram 255 hm3, um débito que superou os 177 hm3 que a EDIA está obrigada a respeitar para assegurar o caudal ecológico, ou seja, para manter o rio vivo.

É este volume de água que passou a estar sujeito a disputa pelas regiões algarvia e de Huelva. Do lado de Espanha, o Ministério da Transição Ecológica e do Desafio Demográfico (MITECO) já aprovou o alargamento do chamado túnel de San Silvestre, obra que vai permitir enviar um caudal de água calculado em 20 metros cúbicos por segundo, para garantir o abastecimento a “cerca de 200 mil pessoas, às culturas regadas, às indústrias do pólo químico, ao sector turístico de Huelva” e ainda “facilitar a recuperação do aquífero do Parque Nacional de Doñana”.

Os regantes da região espanhola reclamam também o rápido arranque das obras em Boca-Chança para evitar a “catástrofe económica” que os constantes períodos de seca estão a gerar. Em reforço desta solução, reivindicam ainda o aumento da capacidade de armazenamento da barragem de Andévalo, estrutura que foi construída nos anos 90, a montante da barragem do Chança, com uma capacidade para armazenar de 600 hectómetros cúbicos, e que a CR Palos pretende que seja aumentada para 1025hm3.

Foto
Seca na região de Huelva, em Espanha Miguel Manso

Disputa numa zona de escassez

A captação de água do rio Guadiana “não pode ser feita, por Portugal ou por Espanha, sem ambos os países estarem coordenados entre si e sem conhecerem as reais disponibilidades do rio, principalmente numa zona que sofre de escassez”, alertam as organizações ambientalistas ANP

WWF Portugal e a WWF Espanha.

E se não for assegurado o cumprimento de um regime de caudais ecológicos no estuário do Guadiana em Vila Real de Santo António, “estaremos a hipotecar serviços dos ecossistemas tão importantes quanto a gestação e criação de muitas espécies piscatórias, a alimentação em sedimentos das praias nas costas do Algarve e da Andaluzia, ou a sobrevivência das galerias ripícolas que nos protegem de cheias e secas", explicou Afonso do Ó, especialista em água e clima da ANP

WWF, no webinar “Cooperação transfronteiriça, usos e escassez de água no Baixo Guadiana”, realizado em Abril de 2022.

Em síntese, Espanha já capta água do Guadiana e prepara-se para reforçar as captações directas na foz do Chança, para abastecer os regadios intensivos de Huelva, e Portugal prepara uma nova captação a montante do antigo porto mineiro do Pomarão para abastecer idênticos regadios intensivos e o consumo humano no sotavento algarvio.

Foto
Cultivo intensivo em estufas na região de Huelva, em Espanha Miguel Manso

Nos dois países vizinhos que partilham as águas do Guadiana, os planos já estão em marcha. O delegado territorial da Agricultura, Pescas, Água e Desenvolvimento Rural da Junta de Huelva, Álvaro Burgos, nos esclarecimentos que prestou à comunicação social de Andaluzia, adianta que as obras de bombagem de Boca-Chança já têm destinado “um orçamento de 2,8 milhões de euros para garantir o escoamento de até 75 hectómetros cúbicos de água”.

Contudo, o sistema de captação “continua instalado com carácter provisório e a sua exploração em definitivo não foi alvo de autorização pelo Estado português”, confirma a Agência Portuguesa do Ambiente em esclarecimentos prestados ao PÚBLICO.

Situação crítica no Sul

O quadro da escassez de recursos hídricos no Sul de Espanha não difere da situação descrita pelo ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, para o Sul de Portugal, na passada quinta-feira, no Algarve, depois da reunião da comissão de acompanhamento dos efeitos da seca em território português.

O ministro alertou para “níveis críticos” de água no solo, especialmente no Sul de Portugal, acrescentando que as previsões apontam para a continuação de temperaturas do ar acima da média. Um terço do país está em seca severa ou extrema, afectando especialmente as zonas do vale do Tejo e Sul do país.

Uma resolução aprovada na Assembleia da República no passado dia 22 de Dezembro recomenda ao Governo que o projecto de “Reforço do Abastecimento de Água no Algarve Solução da Tomada de Água no Pomarão”, no rio Guadiana, dê prioridade ao abastecimento doméstico. E que não se destine a “manter ou a aumentar a área e o consumo de água de culturas insustentáveis”, aconselhando que a agricultura da região do Algarve se deve adaptar às “condições e aos recursos existentes”.

Poder-se-á dizer que a água está a ser disputada de onde faz falta para onde é precisa.