Rabo de Peixe lembra cicatrizes, mas “nunca a comunidade se sentiu tão abraçada”

Marta Couto, dirigente de uma associação de Rabo de Peixe, em São Miguel, falou ao PÚBLICO sobre a perspectiva da comunidade quanto ao próprio retrato na Netflix.

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Série Rabo de Peixe foi gravada na ilha de São Miguel, nos Açores PAULO GOULART/NETFLIX
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Estreou a 26 de Maio a série Rabo de Peixe. Seja pela história surreal que conta, inspirada em factos verídicos, ou por ser a segunda série portuguesa realizada para a gigante Netflix, depois de Glória, o guião escrito pelo açoriano Augusto Fraga está a monopolizar a atenção do público português, e não só. Segundo a plataforma de streaming, a série também foi das mais vistas no Luxemburgo e em Espanha.

Que Rabo de Peixe é mais do que o estigma e do que “uma das vilas mais pobres do país e da Europa” já deveríamos saber. Mas, para uma população saturada de ser a má notícia, o anúncio da produção de uma série sobre a chegada de mais de meia tonelada de cocaína às praias de Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel, no ano de 2001, foi recebido a medo.

Marta Couto, directora da associação Crescer em Confiança, fundada em 1999 para apoiar a comunidade de Rabo de Peixe, falou ao PÚBLICO sobre que frutos darão à costa depois do fenómeno da Netflix, e sobre a perspectiva da população quanto ao próprio retrato.

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Marta Couto é directora da associação Crescer em Confiança, organização sem fins lucrativos criada em 1999 para apoiar a comunidade de Rabo de Peixe. DR

Uma reportagem do PÚBLICO de Junho de 2022 dava conta de algum receio da população em relação à série, temendo que contribuísse para "reforçar a carga negativa associada à vila piscatória". Como foi recebido o produto final?

Fui uma das primeiras pessoas a manifestar publicamente essa preocupação, por causa da perpetuação de estereótipos sobre uma comunidade “assente no tráfico e no consumo”. Mas depois de ver os primeiros episódios fiquei agradavelmente surpreendida.

É preciso reconhecer que Rabo de Peixe tem problemas de cariz social, mas a vila é muito mais do que os estereótipos a ela associados. Muitas vezes criam-se mitos — como o do peixe panado com cocaína [depois de o carregamento de droga ter dado à costa em 2001] — que são retratados na série com alguma ironia. Percebe-se que, na verdade, não aconteceu assim.

Depois de vermos a forma como a série foi feita, como a equipa de produção foi acolhida na Ribeira Grande [concelho a que pertence a vila de Rabo de Peixe] e como abraçaram o projecto, esses medos dissiparam-se. O que temos visto é uma alegria e aceitação quase generalizadas por parte da população de Rabo de Peixe, apesar do tema retratado. A série será sempre polarizadora, mas no final a opinião que interessa é a da comunidade.

Como é que o sucesso da série se pode reflectir em boas notícias para Rabo de Peixe e numa melhoria da vida da população?

Haverá um aumento da curiosidade sobre São Miguel, a Ribeira Grande e Rabo de Peixe, mas não vamos ver efeitos imediatos a nível da melhoria da qualidade de vida.

Acredito que, ao longo do tempo, este afagar do ego das pessoas de Rabo de Peixe pode servir para suavizar a forma como elas próprias olham para a vila. Por serem tão estigmatizadas, muitas vezes lutam contra si próprias. Com o aumento da visibilidade, do carinho, talvez a sua auto-estima também aumente. Talvez vejam que o mundo pode não ser uma luta constante, porque para muitos é. Talvez os faça compreender que as pessoas gostam deles. Rabo de Peixe precisa de se erguer acima de uma imagem negativa veiculada durante anos e anos.

O estigma aliena as pessoas, afasta-as, e Rabo de Peixe é muito mais do que números e do que “a parte má”. Há um sentimento notável de união, de comunidade entre as famílias, que muitas vezes não transparece.

A série não é a solução para nada, mas pode ser mais um bloco na construção do edifício que é Rabo de Peixe. Estamos aqui para trabalhar em comunidade, e é assim que podemos dar às pessoas oportunidade de sair de ciclos de pobreza em que não pediram para estar.

Vinte e dois anos depois, o que aconteceu em Rabo de Peixe ainda deixa marcas na vila?

É uma memória bastante presente. Na altura não percebíamos bem a dimensão do que estava a acontecer, só quem foi directamente afectado pela droga poderá atestar a gravidade do que se passou. A realidade de uma família que vê um problema destes entrar pela porta dentro é algo que só pode ser contado na primeira pessoa.

Acredito que, estando tão perto no tempo, sendo tão recente, ainda existam pessoas e famílias a sofrer as consequências. Muito provavelmente alguns ganharam um vício nessa altura que se mantém até hoje. Conheci pelo menos uma pessoa que morreu de overdose, foi muito complicado para o concelho observar o que acontecia em Rabo de Peixe.

Neste momento, o problema da toxicodependência vai muito além de Rabo de Peixe, abrange todo o concelho. A origem é difusa, não é em Rabo de Peixe. Não bastava ser uma comunidade condicionada pela vida piscatória, pelas vicissitudes do mar, [meia tonelada de cocaína] era a última coisa de que precisava.

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Um dos actores da série segura um pacote a imitar os fardos de cocaína que chegaram às praias de Rabo de Peixe em 2001, na costa norte da ilha de São Miguel. PAULO GOULART/NETFLIX

A série pode ajudar a aligeirar essa memória?

As cicatrizes que esta situação deixou foram graves, são permanentes. Aligeirar o que se passou na dramatização que é feita na série talvez torne menos pesado o ambiente à volta do assunto. Aligeirar o acontecimento em si, duvido que seja possível. Deixou feridas profundas, destruiu famílias, destruiu pessoas.

Mas acho muito importante a realização da série. Nunca a comunidade se sentiu tão abraçada. Não tenho ouvido críticas sobre um agravar do preconceito em relação a Rabo de Peixe. Há que agradecer ao Augusto Fraga [realizador da série, juntamente com Patrícia Sequeira] e à equipa que fez com que a comunidade se movesse numa só direcção.

Ficamos à espera desse abrir de olhos, desse aumentar da curiosidade, que se divirtam a ver a série, que, sendo dramática com laivos de comédia, não estigmatiza Rabo de Peixe.

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