Para instalar uma central solar, o Grupo Pestana sacrificou árvores em Beja

Seis lódãos que Gonçalo Ribeiro Telles idealizou para o conjunto arbóreo instalado na parte exterior da Pousada de S. Francisco em Beja sofreram uma poda drástica.

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Os lódãos foram cortados para que não fizessem sombra aos painéis solares
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Só se pode imaginar que reacção teria o arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles, se fosse vivo, face ao que foi feito ao conjunto de lódãos (Celtis australis) que idealizou em 1994 para arborizar o espaço exterior da Pousada de S. Francisco em Beja. Talvez não se afastasse muito da reacção que o poeta Eugénio de Andrade teve quando escreveu um poema, n’A cidade de Garrett, a um velho lódão derrubado na Avenida dos Aliados no Porto: “Se falei de árvores com ácida melancolia é porque me derrubaram uma das que mais amei na vida, o velho lódão que me entrava pela varanda e dava notícia das estações. O móbil foi, naturalmente, atravancar a rua com mais automóveis.”

Há poucas semanas o Grupo Pestana Pousadas que detém a concessão da pousada de S. Francisco, em Beja, ordenou o corte drástico da copa de seis lódãos, recorrendo a um método que é conhecido por “poda camarária”, dada a frequência com que as autarquias recorrem a este tipo de acção.

O PÚBLICO solicitou esclarecimentos ao Grupo Pestana, que diz ter actuado “no âmbito do programa de sustentabilidade ambiental do Pestana Hotel Group” e que passa pela instalação de painéis solares fotovoltaicos “com vista à redução da pegada ambiental”.

A localização da estrutura obrigou a proceder a uma “poda parcial de árvores cuja sombra invalidava a geração de energia solar”, mas “em nenhum momento esta operação colocou em risco as árvores intervencionadas ou provocou a sua destruição”, conclui a empresa.

Rui Eugénio, vereador da CDU, diz ter ficado “perplexo” quando tomou conhecimento do “desbaste de árvores frondosas no Largo da Pousada de S. Francisco”, uma intervenção que denunciou na reunião do executivo municipal de 17 de Maio por lhe parecer “abusiva”.

Também Rui Marreiros, vereador do PS na Câmara de Beja e responsável pela Divisão de Ambiente e Sustentabilidade, disse ter ficado “estupefacto” quando observou a dimensão da poda nas árvores. “De repente, os telefonemas começaram e os alarmes soaram” em protesto e crítica contra o que estava a ocorrer aos lódãos que foram plantados no largo fronteiro à pousada de S. Francisco, relatou o autarca, garantindo que o município de Beja não teve qualquer participação naquele tipo de poda.

Fazendo a cronologia dos acontecimentos, Marreiros descreveu o que, na sua análise, aconteceu: “A pousada [Grupo Pestana Pousadas] contratou o serviço, montou uma grua, pediu [autorização à Câmara de Beja] para ocupar o espaço público e podar árvores dentro da pousada, onde são livres de fazerem o que muito bem entenderem.”

O autarca admitiu que a capacidade de intervenção do município estaria sempre condicionada. “Tudo indica”, salientou, que o espaço “é propriedade da pousada [Grupo Pestana] e, consequentemente, as árvores eram propriedade sua”. Frisou que “pouco havia a fazer” perante um facto consumado. “Não autorizámos, não sabíamos, nem fomos a tempo de intervir”, salientou ainda Rui Marreiros.

Mesmo assim, adiantou durante a reunião de câmara realizada nesta quarta-feira, está a ser elaborado um relatório da ocorrência, do qual o Gupo Pestana já foi “notificado”, enquanto os serviços municipais avaliam se a poda efectuada nos moldes em que ocorreu é matéria que possa vir a exigir uma acção sancionatória.

O PÚBLICO questionou o autarca por que razão, depois de os serviços municipalizados terem autorizado a montagem de uma grua que iria ocupar o espaço público para podar árvores, não houve fiscalização da operação e não se procurou previamente saber se o largo onde decorreu a intervenção é espaço público ou privado, mas Rui Marreiros não respondeu às questões colocadas.

Projecto dos anos 90

A Pousada de S. Francisco em Beja ocupa as instalações do antigo convento com o mesmo nome. Os primeiros registos da sua existência datam de 10 de Novembro de 1268 e ao longo de quase 800 foi sujeito a múltiplas transformações e diferentes ocupações, até que o estado de ruína em que se encontrava no início dos anos 90 do século passado impôs a sua reabilitação e adaptação a pousada.

As obras decorreram entre 1993 e 1995 sob supervisão da Empresa Nacional de Turismo, S.A. (Enatur), entidade que presidiu à conservação e recuperação de monumentos e outros edifícios de valor histórico-cultural com vista ao seu aproveitamento turístico. A 8 de Agosto de 2003, esta entidade assinou um contrato de cessão de exploração da Pousada de S. Francisco com a cessionária Grupo Pestana Pousadas, SA. E nas orientações estratégicas da Enatur, aprovadas em assembleia geral de Março de 2020, na concessão à iniciativa privada e na supervisão da exploração dos estabelecimentos hoteleiros da Rede de Pousadas de Portugal destaca-se: “Zelar pela preservação do património nacional e privado posto à disposição da Rede de Pousadas, acompanhando a cessionária no levantamento das necessidades tendentes à sua conservação.”

O largo fronteiro à Pousada de S. Francisco, beneficiou em 1994 de um projecto de arquitectura paisagista da autoria de Gonçalo Ribeiro Telles, que incluiu a plantação de 12 lódãos. A poda efectuada nas últimas semanas deixou as árvores mutiladas de modo a impedir que a sua sombra se projecte nos painéis solares que o grupo Pestana se prepara para instalar.

Alterou-se em horas uma imagem de 30 anos perante o olhar incrédulo de várias pessoas que acompanharam a poda das árvores. Ficam a contrastar com outras seis que permanecem “frondosas e muito úteis nos dias de calor e sol intenso que se aproximam”, comentava Justino Lacerda, que ali passava, enquanto tirava fotografias com o seu telemóvel.

Um engenheiro silvicultor explicou ao PÚBLICO que a “supressão da copa das árvores vai intensificar o aparecimento de rebentos mais abundantes e emaranhados”, o que vai exigir “novas intervenções que irão expor os exemplares podados a infecções por agentes patogénicos”.