Na prevenção de incêndios, “nenhum conhecimento vai gerar acção se não incluirmos as populações”
Catherine Gamper, responsável da OCDE pela área de adaptação às alterações climáticas, esteve em Portugal para apresentar o novo relatório da organização sobre prevenção de incêndios florestais.
Não são apenas os investigadores das ciências naturais que olham com curiosidade para as alterações climáticas e para os incêndios florestais: também os economistas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) acompanham com um olhar atento o impacto cada vez maior que o clima tem na intensidade, frequência e duração das épocas de incêndios, que resultam em perdas económicas cada vez mais devastadoras.
A austríaca Catherine Gamper, que lidera o grupo de trabalho de Adaptação às Alterações Climáticas da divisão de Ambiente da OCDE, tem estudado de perto estes efeitos, coordenando estudos de caso sobre diversos países. Com formação na área das finanças públicas, orientada para a economia política e do ambiente, chegou a trabalhar com o Banco Mundial na área de gestão de risco de desastres antes de se juntar à OCDE, onde também trabalhou inicialmente sobre resiliência e prevenção de desastres.
Depois de trabalhar temas como a adaptação das cidades à subida do nível das águas do mar, a equipa de Catherine Gamper debruçou-se sobre os incêndios florestais. No relatório da OCDE apresentado há duas semanas, “Gestão dos incêndios florestais no contexto das alterações climáticas”, junta-se conhecimento científico e económico à experiência de actores no terreno para mostrar os problemas e as respostas aplicadas em diferentes contextos. O relatório baseou-se nos casos da Austrália, Costa Rica, Estados Unidos, Grécia e Portugal para compreender como adaptaram a sua acção aos grandes incêndios que afectaram os seus territórios nos últimos anos.
Os estudos de caso de cada um dos países ainda não foram lançados, mas Catherine Gamper deixa algumas pistas sobre Portugal: levamos um grande avanço a nível da estrutura institucional, mas falta mais esforço para envolver as populações na elaboração dos planos.
Quando lemos relatórios como estes, há tendências que parecem ser universais, mas a verdade é que são lugares muito diversos. O que é que vamos encontrar no estudo de caso português que é diferente do que se passa nos outros países?
É muito diferente. Os países para os quais olhámos neste relatório foram os Estados Unidos, Portugal, Grécia, Austrália e Costa Rica. Todos estes países são fortemente afectados por incêndios florestais extremos, mas a forma como lidaram com isso e o ritmo a que foram mudando a maneira como fazem a gestão dos incêndios são muito diferentes. Em Portugal, a criação de uma agência ligada ao primeiro-ministro é, em termos de abordagem institucional, bastante original. Penso que há outros países que têm ideias semelhantes em mente, como a Grécia, que juntou os ministérios que trabalhavam com alterações climáticas e com a protecção civil num único ministério da acção climática e gestão de crise. A ideia por detrás disto é igual: garantir que não estamos demasiado focados na protecção civil e no combate aos incêndios, mas trazer os outros actores que possam ajudar a fortalecer o lado da prevenção.
Tem trabalhado com redução de risco de desastres há muitos anos. O que é que aprendeu nestes três anos de produção do relatório? Em que é que o nosso conhecimento tem evoluído e o que falta fazer?
O nosso conhecimento tem evoluído de forma incrivelmente rápida. Quando começámos a trabalhar neste relatório, há uns três ou quatro anos, havia alguns palpites sobre a influência das alterações climáticas nos incêndios florestais. Hoje já há uma correlação estabelecida e o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) incluiu os incêndios como um dos riscos centrais relacionados com o clima. Mas também evoluiu a forma como lidamos com incêndios. As medidas de prevenção, gestão de combustível, projectar faixas de gestão de combustível, ter mosaicos na paisagem de forma a ser mais fácil limitar a propagação dos incêndios florestais. Já temos este conhecimento há décadas, em alguns territórios tem sido usado de forma tradicional há muito tempo, por comunidades rurais que já sabiam como gerir as suas florestas de forma tradicional e coabitavam com fogos.
Isto não é conhecimento novo. O desafio é usar este conhecimento de forma sistemática e em escala. Os incêndios florestais estão relacionados com mudanças que não são apenas na paisagem da floresta, mas nos padrões socioeconómicos, com o abandono de terras e a perda destes actores que tradicionalmente geriam o fogo. Ou seja, sabemos o que fazer, sabemos como fazer, mas temos de ter em mente todas estas circunstâncias diferentes. O que significa que, para conseguirmos levar a cabo estes planos, temos de repensar as políticas. Temos de repensar que incentivos estamos a dar às pessoas para desistir da terra ou para regressarem à terra e trabalharem nela, repensar a dependência na produção da madeira. É preciso também projectar mecanismos de financiamento para mudar isso. Há uma série de coisas para repensar.
A ministra portuguesa Ana Abrunhosa falou do mercado voluntário de carbono como um desses incentivos. Isto já tem sido projectado noutros países, mas a nível internacional os mercados voluntários têm sido muito questionados. Existem boas práticas para que esta possa ser uma boa solução? Está no vosso top de soluções?
Não, não diria que está no nosso top de soluções porque se baseia na premissa de uma economia que está significativamente dependente dessa indústria ou dessa actividade económica. Se olharmos para o contexto dos países da OCDE, que pode ser muito diferente de outros países com menos rendimentos, é por norma uma pequena parte do PIB. Ao abordar o problema dessa forma, talvez se ganhe alguma vantagem, mas não penso que vá resolver o grande problema. O motivo pelo qual as zonas rurais estão neste momento despovoadas é o facto de os incentivos económicos estarem noutro lado.
Ou seja, poderia ser uma peça do puzzle, mas em países desenvolvidos não será tão significativa.
Sim.
Uma das questões muito vincadas na apresentação do relatório é que, quando falamos de adaptação, também temos de ouvir as populações. Tem-se ouvido falar cada vez mais nos “conhecimentos tradicionais”, mas em países europeus parece não se valorizar tanto a experiência das comunidades rurais. Como é que se está a traçar este diálogo? Por exemplo, Portugal tem uma estrutura forte, orçamento, conhecimento técnico — há bons exemplos de como incluir este diálogo?
Essa é uma muito boa questão, ainda ontem ouvi a mesma questão de colegas do Canadá. No Canadá, tal como na Austrália ou na Nova Zelândia, o debate sobre políticas públicas já tem avançado o suficiente para reconhecer que estas comunidades indígenas continuam a existir e quem faz parte delas. Tem havido algum reconhecimento destes grupos e de que eles devem ter uma voz activa. Contudo, é muito desafiante, mesmo nesses contextos, trazê-los para um lugar de destaque, ou seja, não apenas reconhecer a sua existência e dar-lhes um lugar, mas de facto incentivar os seus contributos, porque — aí tocou no ponto certo — as suas actividades ainda são muito dependentes dos recursos ambientais e dos serviços dos ecossistemas, incluindo a produção de madeira e o trabalho com as florestas. Podemos fazer um trabalho muito melhor a identificar e caracterizar estas boas práticas, apoiar o que fazem e facilitar estas conversas — que pelo menos neste caso podem ser lideradas por eles, e não pelas autoridades —, de forma a transmitir os conhecimentos técnicos destas populações para um grupo mais alargado de comunidades que estão a trabalhar com os mesmos problemas. A preservação do conhecimento é um factor-chave aqui. E imagino que seja semelhante em Portugal.
No estudo de caso sobre Portugal, que ainda vai ser publicado, quais foram os desafios identificados nesta questão do envolvimento das comunidades nos esforços de adaptação?
Ah, há aí um grande desafio! Temos visto as conclusões sobre como as alterações climáticas estão a mudar as projecções e avaliações de risco de incêndio florestal. Há uns cinco anos, talvez fosse possível haver algum consenso sobre as partes do território em risco de incêndio, mas, com as projecções climáticas, estas áreas têm aumentado três ou quatro vezes e começam a invadir comunidades que por norma não eram directamente afectadas por incêndios florestais.
A dificuldade é que, ao se basearem em conhecimento empírico sobre as áreas mais afectadas pelos incêndios, estas comunidades têm dificuldade em aceitar o que os modelos estão a dizer-nos. Porque é que eu deveria aceitar este mapa de risco quando os incêndios nunca costumam chegar a esta zona? Há muito este sentido de confiar no conhecimento passado e uma dificuldade em trazer esse conhecimento novo da ciência de volta à comunidade. E isso é um grande desafio, principalmente em Portugal. Penso que é por isso que temos visto algumas medidas a não serem adoptadas. Aqueles que precisam de as aplicar estão a nível local.
E como é que conseguimos melhorar esse diálogo? Em localidades mais pequenas ou rurais, talvez haja mais proximidade das autarquias com as populações do que nas grandes cidades. Que sugestões pode deixar para os executivos para comunicarem melhor com as comunidades?
Não acho que seja uma questão de ter especialistas ou tecnocratas a comunicar melhor sobre o que sabemos. Muito honestamente, não creio que seja essa a solução. A forma como geramos esse conhecimento e a maneira como geramos essas avaliações precisa de se tornar mais inclusiva. Países como a Áustria têm excelentes processos em que isto se vê desde o início. Os especialistas elaboram uma avaliação de risco e depois essas avaliações são objecto de consulta pública. Nesses períodos não se está apenas a apresentar o plano às pessoas, mas cada cidadão ou actor local pode opor-se ao plano, seja por que motivo for.
Posso dizer simplesmente que não quero que a minha casa esteja numa zona de alto risco porque isso a vai desvalorizar. Se os especialistas vão alterar alguma coisa só com base nisso? Não sei. Mas o que também se pode fazer com base nisso é refazer essa avaliação com melhores modelos, melhores informações locais e de facto responder às pessoas. O que temos visto na Áustria é que estes processos de consulta pública têm evoluído para que as pessoas possam mesmo dizer "não, a realidade é diferente na nossa comunidade e a área de alto risco deveria mesmo ser ampliada". E, por vezes, isto até vai contra o interesse económico ou incentivos para empresários ou proprietários de casas. Mas a partir daí é que se constrói o plano, se decide como mudamos a maneira de fazer as coisas, o que relocalizar, como refazer negócios em diferentes áreas, repensar mudanças estruturais na economia e assim por diante.
Trazer novas ideias e construir em conjunto.
Exactamente, usá-lo como um instrumento de diálogo desde o início e de forma recíproca. E mostrando humildade com as comunidades. Isso é fundamental. O que sabemos sobre Portugal é que nenhum conhecimento vai gerar acção se não for construído em conjunto, se não incluirmos os conhecimentos das populações.