Lítio no Barroso: “A nossa posição é que este projecto não avance”, diz autarca

Presidente da Câmara Municipal de Boticas reagiu à declaração favorável da APA à ampliação da Mina do Barroso para a exploração de lítio. Associação Zero também rejeita empreendimento.

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Amostras carotadas pela empresa inglesa Savannah no local da futura mina de lítio em Covas do Barroso Adriano Miranda
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O presidente da Câmara Municipal de Boticas disse nesta quarta-feira que vai fazer tudo o que estiver ao alcance do município para que a ampliação da mina do Barroso, um projecto de exploração de lítio, não avance, reagindo assim à posição da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que emitiu nesta quarta-feira uma Declaração de Impacte Ambiental (DIA) favorável ao projecto, apesar de haver condicionantes.

“A nossa posição é que este projecto não avance”, disse ao PÚBLICO Fernando Queiroga, presidente da Câmara Municipal de Boticas, situada nas terras do Barroso, no distrito de Vila Real. “Vou reunir-me com as equipas que nos estão a assessorar neste processo, ver agora as possibilidades de recursos quer em instâncias nacionais, quer em internacionais. Tudo o que estiver ao nosso alcance iremos fazê-lo”, garantiu o responsável, que nasceu naquela região, e foi reeleito em 2021 para o terceiro mandato do município.

O projecto de ampliação da mina do Barroso – que fica perto da aldeia de Covas do Barroso, no município de Boticas –, detida pela empresa Savannah, registada em Londres, no Reino Unido, quer explorar à superfície o minério com lítio numa área de 70,6 hectares ao longo de uma concessão de 593 hectares (5,93 quilómetros quadrados). O projecto de 17 anos, 12 dos quais de exploração, prevê a extracção de 1,45 milhões de toneladas por ano de pegmatito litinífero, um tipo de granito com cristais grandes de onde se pode produzir lítio usado nas baterias eléctricas.

A concessão da exploração foi adquirida pela Savannah em 2017 e a Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) foi iniciada em Julho de 2020, depois de a empresa ter entregado o Estudo de Impacte Ambiental. O projecto sofreu um primeiro parecer desfavorável em 2022 da comissão de avaliação que também teve em conta os resultados da consulta pública. Desde o início que o projecto teve a oposição da população, do presidente da Câmara Municipal de Boticas e de ambientalistas.

“O projecto nunca foi transparente atempadamente para que possamos analisar todos os procedimentos”, refere agora Fernando Queiroga. “A APA não teve em conta a posição dos organismos quer da câmara municipal, quer das juntas da freguesia, quer da população, nem teve em conta a distinção única do país que é a classificação de Património Agrícola Mundial, juntamente com Montalegre.”

O selo de Património Agrícola Mundial foi atribuído em 2018 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) à região do Barroso, que junta os municípios de Boticas e Montalegre, por causa da histórica paisagem humanizada através de processos de agricultura e pastorícia e que mantém áreas naturais relativamente intactas.

Na configuração inicialmente apresentada, “o projecto provocaria impactes negativos significativos a muito significativos, em alguns casos não minimizáveis, ao nível de factores ambientais determinantes para a avaliação, como sejam os recursos hídricos, os sistemas ecológicos, a paisagem e a socioeconomia, concluindo, assim, no sentido desfavorável”, lê-se na nota que a APA enviou nesta quarta-feira à comunicação social.

Impacto negativo na paisagem

A avaliação positiva da DIA já é em resposta às alterações que a Savannah fez ao projecto. Com as alterações, o projecto salvaguarda "as suas dimensões ambientais" na "protecção dos cursos de água, da salvaguarda da biodiversidade ou da questão dos resíduos", alega a APA.

A mineração de lítio ocorre no contexto de uma procura cada vez maior de baterias eléctricas que possibilitam a transição de uma economia baseada em combustíveis fósseis, responsáveis pelas alterações climáticas, para uma economia sustentada pelas energias renováveis, segundo Nuno Lacasta, presidente da APA. “Aquilo que estamos a fazer é dar um sinal claro, regulamentar, de que esta exploração mineira em Portugal será feita obedecendo aos mais altos padrões de gestão ambiental, constituindo-se uma referência internacional”, afirma o responsável ao PÚBLICO, referindo-se à ampliação da mina aprovada pela APA.

Entre as mudanças está uma redefinição do traçado do projecto que permite “uma redução da área total de solo afectada permanentemente e a minimização dos efeitos nas linhas de água”, a “recuperação paisagística da área de intervenção”, a limitação de parte dos trabalhos ao horário diurno – uma condição exigida pela população, já que a mina ficaria situada a menos de 1000 metros de Covas do Barroso –, a “eliminação do acesso sul, que implicava a travessia do rio Beça, e introdução de uma potencial variante para ligação à [auto-estrada] A24”, sujeita a uma AIA autónoma, segundo a nota.

Além disso, a APA define quatro condicionantes: o pagamento de royalties por parte da empresa ao município de Boticas; não haver captação de água do rio Covas; a construção de um acesso de ligação à A24 com o parecer positivo da DIA; e a limitação do período de desmatamento que só poderá ocorrer entre 1 de Setembro e 15 de Março, para evitar o distúrbio durante a época crítica da nidificação das aves e de reprodução do lobo e de outros animais.

Mas a própria agência assume que haverá um impacte negativo naquela paisagem. “Considera-se que o projecto induz impactes negativos significativos e muito significativos sobre diversas vertentes, sobretudo ao nível da alteração do relevo e da rede hidrográfica, e da perda de vegetação, que se traduzem em impactes estruturais e funcionais e, consequentemente, em impactes de natureza visual”, lê-se no documento de Título Único Ambiental emitido também nesta quarta-feira pela APA.

Estes impactes “projectam-se sobre observadores permanentes, observadores temporários, assim como sobre as áreas com qualidade visual 'elevada' e 'muito elevada' afectadas na sua integridade visual e que, neste caso, integram o 'sistema agro-silvo-pastoril do Barroso'” que se encontra classificado pela FAO, acrescenta o documento.

“Temos consciência dessa situação e de que devemos trabalhar no sentido de evitar a perda desse selo”, diz Nuno Lacasta. “O plano de acção terá no seu centro essa atenção em termos das práticas importantes que deram este reconhecimento e, continuando a trabalhar com a Savannah, quando agora passarem para a fase de projecto de execução, irá obviamente ser assegurado que essa componente também é salvaguardada o mais possível, com vista a manter os níveis de protecção das práticas agrícolas que são ali tradicionais.

Comissão de acompanhamento

Perante este panorama, Fernando Queiroga não cede. Este projecto é um remendo do primeiro projecto”, adianta. “A mina só labora no período diurno, mas esqueceram-se de corrigir a outra parte, a lavaria vai trabalhar 24 horas por dia, e a lavaria só trabalha se a mina trabalhar”, argumenta.

“Ficámos perplexos com a decisão da APA, que deveria ser a primeira a defender o ambiente, a qualidade das águas. Estamos indignados”, admite por sua vez ao PÚBLICO Nelson Esteves, da associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso. “As alterações [do projecto] foram mínimas, as cortas [onde o minério vai ser explorado] mantêm-se no mesmo sítio, a proximidade às casas continua a ser a mesma, a proximidade dos rios continua a ser a mesma, é claro que isso não é compatível com a vida das pessoas”, queixa-se. “Mais uma vez, a APA cedeu a interesses financeiros e económicos, e ignorou completamente a população.”

Além disso, Fernando Queiroga não confia na capacidade de fiscalização das autoridades competentes: “Sabemos que os organismos do Estado não fiscalizam coisíssima nenhuma, se o projecto vier a acontecer, o município de Boticas terá um papel preponderante de fiscalização diário das condicionantes.”

Para Francisco Ferreira, presidente da associação Zero, os temores do autarca são justificados. “Tem razão, uma das grandes falhas na avaliação do impacte ambiental é o seguimento dos projectos, sejam eles quais forem”, diz o responsável ao PÚBLICO, alertando para o perigo no caso de as coisas correrem mal.

“Apesar de o regime permitir algumas salvaguardas, no caso do abandono ou de um desastre ecológico na zona temos dúvidas sobre a sua efectividade”, explica. “O Estado ainda não foi capaz de publicar o regime relativo à descontaminação dos solos e não nos dá confiança de conseguir intervir numa questão desta natureza ou passar a responsabilidade para a empresa.” Ou seja: no caso de haver um acidente ambiental e sem legislação aplicável à situação, o ambientalista questiona como será possível responsabilizar a empresa.

Em relação ao risco de falta de acompanhamento, o presidente da APA garante que isso irá ser acautelado. “Pretendemos instituir uma comissão de acompanhamento ambiental que irá nos próximos anos acompanhar passo a passo a implementação dos diferentes elementos deste projecto”, diz Nuno Lacasta.

Prejuízos sem benefícios?

Segundo a Zero, “há demasiadas coisas que levam a dizer que ali não”, afirma Francisco Ferreira. Por um lado, há várias questões a nível da contaminação dos solos e dos recursos hídricos que, apesar de a sua contenção ser garantida na teoria, a associação receia que não esteja assegurada na prática, temendo o risco de “desmoronamentos e infiltrações” devido à topografia íngreme da região. Por outro lado, a questão social e as contrapartidas são insuficientes, adianta a associação.

“Admitimos a exploração de lítio em Portugal, se temos o recurso é justo que também dêmos uma contribuição para o papel que o lítio tem na descarbonização, mas é fundamental identificar os locais com menor impacto”, diz Francisco Ferreira, que recorda que aquela mina ficou fora do processo de Avaliação Ambiental Estratégica, por existir ali uma exploração prévia desde 2004.

Há ainda uma questão mais de fundo sobre a exploração de lítio em Portugal e as suas contrapartidas a nível económico. “Não temos a garantia de que vamos utilizar o lítio em Portugal em todo o seu ciclo de valor”, explica o ambientalista, referindo-se à actividade que vai desde a extracção daquele elemento até à produção das baterias e à sua reciclagem. “Estamos a ter um prejuízo grande e não temos o benefício principal.”

Já a perspectiva de Fernando Queiroga é a de alguém que trabalhou para a melhoria daquele território, e corre agora o risco de ver esse trabalho perdido. “São muitos anos a investir em equipamentos, em património, na floresta, na ajuda da fixação de pessoas, nos nossos agricultores, com apoios financeiros para a produção de gado, no apoio à apicultura, no apoio à fixação de população. Criámos infra-estruturas para atrair empresas, turistas, que vêm cada vez mais ao concelho”, recorda. “Não é por uma meia dúzia de trocos que vamos dar o OK a um projecto tão nocivo.”

Notícia actualizada às 19h20 de 31 de Maio de 2023 com as declarações do presidente da APA Nuno Lacasta