Ilya Kabakov, o artista que fez a crónica de uma utopia a caminho do desastre

Referência maior da arte conceptual, morreu no sábado, aos 89 anos. Deixa uma obra vasta, em boa parte criada no quadro da União Soviética ou dela devedora, plena de ironia e de sentido poético.

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Ilya Kabakov e Emilia em Nova Iorque, 2009 Stephen Lovekin/getty images
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Passou a vida a trabalhar em torno daquela que foi, para ele e para muitos como ele, a utopia falhada da União Soviética. E, no processo, acabou por se tornar um dos grandes pioneiros da instalação e uma das referências maiores da arte conceptual. Ilya Kabakov, artista nascido na Ucrânia soviética e há décadas radicado nos Estados Unidos, morreu no sábado, aos 89 anos.

A notícia foi dada pela família no próprio dia e amplificada ao final da tarde de domingo por um comunicado do Centro Georges Pompidou, em Paris, aqui citado a partir do jornal Le Figaro: "Foi com grande comoção que hoje tomámos conhecimento da morte de Ilya Iossifovich Kabakov, um artista essencial durante mais de 70 anos.”

Kabakov, “figura totémica das artes”, assim o define o diário francês, nasceu em Setembro de 1933 em Dnipropetrovsk, na Ucrânia soviética, tendo trabalhado em Moscovo entre os anos 50 e 80, antes de se mudar para os Estados Unidos e de se instalar em Long Island com Emilia, sua mulher e companheira de criação, num estúdio luminoso em que viviam como que afastados do mundo, pode ler-se nalgumas críticas e perfis que foram sendo publicados sobre a obra de ambos.

As suas grandes instalações ocupavam, muitas vezes, salas inteiras e davam a ver, através de personagens inventadas ou de lugares recriados, a sua própria realidade, principalmente a que viveu na antiga União Soviética, uma realidade de que era profundamente crítico.

“Através de um jogo de arquitecturas impossíveis e de anjos perdidos, voos como o de Ícaro e quedas, desenhos melancólicos, textos teóricos e objectos que perderam a sua função, Ilya Kabakov e a sua mulher Emilia apresentaram a sua cultura, a história do seu país no auge da censura e a imaginação selvagem que lhes permite escapar a tudo. A conquista do espaço feita pelo indivíduo”, escreve Valérie Duponchelle, jornalista de cultura, no obituário que o Figaro lhe dedicou no domingo, evocando a instalação Strange City, “desconcertante e poética”, obra que o casal levou ao Grand Palais em 2014, no âmbito da Monumenta.

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Esboço da instalação The man who never trew anything away Cortesia dos autores

Trabalhando com objectos do quotidiano, cuja função explorava ou subvertia com ironia, atribuindo-lhes uma dimensão simbólica, Kabakov foi uma espécie de cronista da União Soviética em queda, parecendo dar aos aspectos mais corriqueiros de uma sociedade que começou por procurar modernizar-se e criar melhores condições de vida para todos e que acabou por fechar-se sobre si mesma, no seu autoritarismo, a atenção que se reserva aos grandes temas ideológicos, aos grandes acontecimentos.

No underground de Moscovo

Da leitura da biografia disponível na página dos dois artistas salta à vista o facto de Ilya Kabakov, que começou a sua carreira nos anos 50 como ilustrador, ter feito parte de um grupo de artistas conceptuais que, apesar de sediado em Moscovo, trabalhava à margem do sistema, um sistema que nunca deixou de evocar na sua obra, ao longo de 70 anos de carreira.

Kabakov integrava, nos anos 60, o chamado Grupo do Boulevard Sretensky, um colectivo clandestino da capital russa que viu alguns dos seus membros serem presos ou exilados. A seu lado estavam artistas como Erik Bulatov, Oleg Vassiliev e Vladimir Borisovich Yankilevsky.

Kabakov, que estudou artes e viria a expor pela primeira vez a solo em Paris, em 1985, mudou-se para o Ocidente em 1987, aproveitando uma residência artística na Áustria, começando a trabalhar com Emilia, que tem formação em música, línguas e literatura, pouco depois. Desde então, os dois artistas, que casaram em 1992 e viveram em Paris ou Berlim, nunca deixaram de ser colaboradores, co-assinando um corpo de trabalhos ancorado na sua experiência russa – as questões da falta de liberdade de expressão e de movimentos, da padronização do espaço e das ideias , mas onde houve sempre ecos da condição humana e dos desafios que enfrenta no que tem de mais universal.

"O grande artista, pensador e escritor Ilya Kabakov morreu. Há apenas cinco dias, os meus amigos coleccionadores estiveram na sua casa em Long Island e enviaram-me fotografias. Ilya estava alegre, vigoroso e emitia uma luz quente. A notícia da sua morte foi um choque”, disse ao Figaro Olga Sviblova, directora do Museu de Arte Multimédia de Moscovo, curadora que em 2014 co-comissariou a já referida exposição desta dupla de artistas no Grand Palais, em Paris. “Com Ilya Kabakov desaparece a era dos artistas capazes de criar não apenas obras, mas universos artísticos, mundos enraizados no passado, baseados no presente e abertos ao futuro”, continuou Sviblova, lembrando que conheceu Ilya Kabakov em 1983, quando um amigo a levou ao estúdio do grupo do Boulevard Sretensky, destino obrigatório da cena artística underground de Moscovo nas décadas de 70 e 80.

Kabakov mostrou-lhe, então, alguns álbuns e trabalhos da sua famosa série Communal Kitchen: "Em 1983, como rapariga criada nos corredores da Galeria Tretyakov e do Museu Pushkin, lendo apenas livros recentemente publicados sobre a arte do modernismo mundial, com ilustrações a preto e branco muito pobres, não estava preparada para encontrar o trabalho de Ilya Kabakov. Ficámos no seu estúdio até de manhã. Ao amanhecer, saí para a cidade, apercebendo-me de que o mundo à minha volta tinha mudado. 70% do mundo tinha-se tornado ‘la kabakovschina’ [o mundo segundo Kabakov]. Nunca, nem antes nem depois, a arte de um artista mudou tão instantaneamente a minha visão do mundo."

Escreve agora a revista Art News que só em 1988, e já a viver nos Estados Unidos, é que o artista se tornou verdadeiramente conhecido do público americano, com a sua exposição individual no Ronald Feldman Fine Arts, em Nova Iorque. Nela mostrou uma série de instalações agrupadas sob o título Ten Characters, com que Kabakov recriava o apartamento comunitário com dez divisões onde tinha vivido quando era criança.

“Eu não era um artista russo a querer mostrar a arte russa ao ocidente”, disse numa entrevista agora citada por esta publicação americana. “A posição conceptual de que partia era esta: olhar a vida soviética através dos olhos de um ‘estrangeiro’ que lá chegasse.”

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Aspecto da exposição-instalação de Ilya Kabakov no Acarte, em 1995 Cortesia: Fundação Gulbenkian/Arquivo de Exposições

O trabalho de Ilya e Emilia Kabokov tem vindo a ser apresentado em importantes museus na Europa e nos Estados Unidos, como o MoMA, em Nova Iorque, e o Stedelijk, em Amesterdão, assim como em bienais. Em 1993, aliás, a dupla esteve em Veneza com The Red Pavillion.

Em 2014, ano da exposição do Grand Palais, viram também o seu percurso tratado em filme. Ilya & Emilia Kabakov: Enter Here é um documentário em que ambos olham para o seu passado soviético, para a forma como marcou a sua vida e o seu trabalho, tendo por contexto o regresso a Moscovo para uma exposição no centro de artes do oligarca russo Roman Abramovich.

Em Portugal, o trabalho de Kabakov foi mostrado na Gulbenkian - os encontros Acarte apresentaram em 1995 a exposição-instalação Acidente no Museu, ou Música Aquática - ou no Centro Cultural de Belém.

Foi precisamente na Garagem Sul deste último que a Trienal de Arquitectura de Lisboa apresentou, no ano passado, outra das suas instalações na exposição Ciclos, cujo título, aliás, parafraseou para o transformar em manifesto. The man who never trew anything away serviu, assim, de bússola a todo um programa que quis pôr em foco “Os arquitectos que nunca deitaram nada fora.”

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