O caminho para o fundo do poço

Luísa Cruz e Miguel Guilherme, carregados de talento e experiência, interpretam com mestria. E não há final feliz, não há redenção, muito menos absolvição.

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Luísa Cruz e Miguel Guilherme ALIPIO PADILHA
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A mensagem é tão singela como crua e definitiva: “Tu e a tua irmã são completamente loucos.” É isto que Felice vai dizer a Claire quando lhe explica a situação peculiar em que se encontram: abandonados pela sua companhia, em teatro decadente de uma cidade de província que já viu melhores dias. Fechados dentro do edifício, a solução que encontram é continuar a representar o drama de irmãos órfãos enclausurados numa casa, que temem abandonar depois da violenta morte dos pais, que os arrastou para aquela digressão. Mas é isso que fazem, ou estes irmãos actores já passaram para lá daquela linha estreitinha que distingue a realidade das armadilhas da sua imaginação?

Em 1967, quando A Peça para Dois Actores se estreou, em Londres, Tennessee Williams (1911-1983) era um dramaturgo consagrado, respeitado dos dois lados do Atlântico, vastamente representado, com várias das suas peças adaptadas ao cinema, apesar de a crítica já anunciar a sua decadência estética. Embora apreciado pelo público, o autor não procurava aparentemente afastar-se, ou pelo menos desviar-se, da marca de água impressa em peças como Jardim Zoológico de Cristal, Um Eléctrico Chamado Desejo (que Diogo Infante encenou em 1998 e em 2010, respectivamente), Bruscamente no Verão Passado, A Noite da Iguana, ou as sublimes Doce Pássaro da Juventude, A Rosa Tatuada e Camino Real, entre uma grande mão-cheia de peças que o tempo tornou canónicas, em busca de outro caminho para a sua obra. O que procurava era, consciente dele, evitar o seu próprio declínio.

Por isso, em A Peça para Dois Actores, com a qual Diogo Infante regressa à encenação de Williams, encontram-se sem esforço os temas e principalmente a maneira como com eles o autor criava o ambiente sufocante, sem esperança, desolado, das suas peças pejadas de famílias e indivíduos psicologicamente instáveis. Ao inflectir o seu trabalho noutra direcção, permanecem também as personagens quebradas pelo quotidiano, sobrevivendo de sonhos e nostalgia, mas reconhece-se o esforço por procurar acrescentar simbolismo, considerável dose de lirismo, e mesmo a exploração do surrealismo ou de alguma forma de bizarria, tornando mais densos os diálogos, insistindo nos jogos de palavras, investindo na ambiguidade e no não dito como estratégia dramática de que esta peça é bom exemplo.

Luísa Cruz e Miguel Guilherme, carregados de talento e experiência, interpretam com mestria estas personagens a tentar sair do abismo, ou a tornar a vida nele menos desagradável, através da representação de um dramalhão que, na verdade, é o espelho da sua situação. Como as personagens, Clare e Felice, discorrem sobre as suas vidas. Como ali chegaram e eventualmente como se perderam num caminho que julgavam radioso e se vai tornando claustrofóbico e inquietante perante a derrocada do sonho até se encontrarem, já depois não do ataque de nervos mas da resignação, neste teatro-prisão que é como o fundo de um poço.

Não há final feliz, não há redenção, muito menos absolvição. Há, antes, uma considerável dose de compaixão na via dolorosa que a encenação de Infante aos poucos vai criando com a preciosa colaboração da cenografia e dos figurinos de Marta Carreiras, a sonoplastia de Rui Rebelo e, principalmente, o inspirado desenho de luz de Miguel Seabra – essenciais na definição desta queda no abismo. Rui Monteiro

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