Bebé morreu engasgado com pedaço de banana. Justiça manda creche indemnizar pais
Caso passou-se em Lisboa. Proximidade entre a creche e centro de saúde e accionamento tardio do INEM levam Supremo Tribunal de Justiça a reverter decisões de primeira e segunda instâncias.
O Supremo Tribunal de Justiça condenou uma creche de Lisboa e a respectiva seguradora a indemnizar os pais de um bebé que ali morreu em 2016, engasgado com um pedaço de banana. Apesar de não haver certezas sobre a sobrevivência da criança caso o socorro tivesse sido mais rápido, os juízes decretaram uma compensação de 42.500 euros, 17.500 dos quais a cargo da creche Humanus, que integra uma instituição particular de solidariedade social financiada pela Segurança Social e está situada no Parque de Saúde de Lisboa, em Alvalade.
A dificuldade em chegar a uma conclusão neste caso, no que toca ao apuramento de responsabilidades, fica bem patente nas diferentes decisões tomadas pela justiça cível: ilibadas nos tribunais de primeira e segunda instâncias, a associação Humanidades e as suas colaboradoras acabaram por ser condenadas no Supremo. Também chegou a ser aberto um inquérito-crime pelo Ministério Público, arquivado em 2019.
Com 20 meses de idade, o bebé frequentava a sala do primeiro ano. Naquela manhã do final de Setembro a mãe deixou-o uma vez mais na Avenida do Brasil. Eram 10h quando as seis crianças da sala foram sentadas à mesa para um lanche, como era habitual. A educadora de infância deu um primeiro pedaço de banana a cada uma e o menino de 20 meses esticou o braço, de mão aberta, para comer um segundo pedaço. Quando se deu o acidente, já só estava na sala com os bebés uma auxiliar de educação. A criança não gemia nem chorava, e não conseguia respirar.
A auxiliar tentou que o menino expelisse a comida colocando-o de barriga para baixo e dando-lhe palmadas nas costas. Sem sucesso. Recorreu então à chamada manobra de Heimlich, um procedimento de primeiros socorros para travar a asfixia através da pressão no tórax. Mas o menor continuava sem emitir qualquer som. Foi nessa altura que a auxiliar lhe colocou os dedos na boca, para ver se encontrava qualquer coisa, e chamou a educadora. Repetiram as manobras de primeiros socorros. A criança estava agora com o olhar fixo, sem reacção, rosto pálido e lábios cinzentos.
Às duas mulheres juntam-se a responsável da creche e a vice-presidente do conselho de administração da instituição. É esta última que ordena que liguem para o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e para os pais do bebé, retirando da sala os restantes menores. Tinham passado 11 letais minutos desde o momento em que o menino ingerira o segundo pedaço de banana. Quando a mãe chega, encontra as funcionárias em redor do filho, deitado no chão. Fazem manobras de suporte básico de vida, agora orientadas pelos técnicos do INEM, com quem estão ao telefone. Do lado de lá da linha pedem ao pessoal da creche para tentar encontrar um enfermeiro nas imediações, uma vez que se encontram num parque de saúde. Mas já ninguém consegue reverter a tragédia.
Morreu 48h depois no hospital
Quando a equipa do INEM chega, às 10h30, tem de usar equipamento próprio para desobstruir as vias respiratórias. O bebé acaba por não resistir às consequências do acidente e morre cerca de 48 horas depois, no hospital, acompanhado pelos pais – que tiveram de explicar aos outros três filhos o que tinha sucedido ao irmão.
Ao fim de minuto e meio de privação de oxigénio, uma criança desta idade perde a consciência e pode entrar em paragem cardiorrespiratória. A partir daí, ocorrem lesões cerebrais de extensão variável. “Após seis minutos, o risco de lesões cerebrais irreversíveis, e até mesmo de morte, é superior a 90%”, concordaram os juízes que analisaram o caso. O cerne da questão consiste em perceber até que ponto a morte podia ter sido evitada.
O tribunal de primeira instância ilibou a creche, tendo condenado a seguradora a pagar mil euros aos progenitores, decisão que o Tribunal da Relação de Lisboa manteve. Mesmo que a creche tivesse entrado imediatamente em contacto com o INEM ou com o centro de saúde existente no recinto, não teria conseguido evitar este trágico desfecho, concluíram estes juízes.
É precisamente esse raciocínio que o Supremo veio agora pôr em causa, numa decisão que põe termo ao processo: “Embora fosse uma hipótese muito provável, nada nos garante que o centro de saúde, naquele momento, não pudesse fornecer os meios humanos e técnicos necessários para desobstruir atempadamente as vias respiratórias do menor.” Foi considerado relevante o facto de este centro se situar a 150 metros da creche.
Dizem os conselheiros que, enquanto tentavam salvar o bebé, as funcionárias da creche deviam ter ao mesmo tempo accionado o INEM e tentado obter ajuda do centro de saúde. Sendo que ficou provado que apenas uma das duas mulheres que estavam inicialmente na sala do primeiro ano tinha formação em primeiros socorros, embora já antiga.
É essa também a opinião do presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, Rui Lázaro. Contactado pelo PÚBLICO para comentar a situação, o especialista entende que o pedido de ajuda devia ter sido feito bastante mais cedo, no máximo quando a criança ficou inconsciente. “Tendo em conta a proximidade a profissionais de saúde, nomeadamente médicos e enfermeiros, a alguns metros da ocorrência, poderiam e deveriam ter chamado estes profissionais, ou até levar a criança ao colo ao seu encontro - o que fosse mais rápido.”
“Concluir que a criança sobreviveria se não se tivesse ‘desperdiçado’ este tempo é claramente excessivo, contudo a probabilidade de sobreviver seria seguramente maior. Pelo menos teria o acesso a todos os cuidados de emergência médica possíveis no menor espaço de tempo possível, o que não veio a acontecer”, acrescenta Rui Lázaro, lamentando que em Portugal a educação em emergência médica dos profissionais deste sector seja muito escassa, à semelhança de outros profissionais que têm, no desempenho das suas funções, novos ou velhos a seu cargo.
Para o sindicalista, é essencial que se inclua na educação de todos os cidadãos formação básica em emergência médica. “Infelizmente em Portugal não tem existido vontade política de avançar nos cuidados de emergência médica, nem na educação do cidadão comum”, conclui.
A creche é frequentada por 33 crianças
Já a presidente do conselho de administração da associação Humanidades, Lúcia Sêncio, insiste que a situação não podia ter sido evitada: “A equipa fez, em consciência, tudo o que conseguiu para evitar este desfecho, mas infelizmente isso não foi possível.” A creche é frequentada por 33 crianças. Questionada sobre o que foi feito para que acidentes destes não voltem a repetir-se, a mesma responsável explica que foi alargada a mais funcionários da associação a formação em primeiros socorros e suporte básico de vida. “Voltámos a falar com a seguradora para encontrarmos um seguro que tivesse prémios mais elevados, mas os que temos na associação são os que são praticados nas creches em geral”, acrescenta.
Admitindo que pode ter havido alguma ineficácia na assistência inicial a este bebé, a presidente da Associação para a Promoção da Segurança Infantil, Sandra Nascimento, recorda que a primeira causa de morte acidental de crianças até um ano de idade é precisamente a asfixia, razão pela qual a vigilância é fundamental, especialmente na altura de introdução de alimentos sólidos e no contacto com a água. "A rapidez no socorro determina o desfecho", avisa.