“Sueña la margarita con ser romero. Con ser romero sueña la margarita…”
O trauteio vai soando, mais ou menos imprevisivelmente, no camarim do Café Lusitano, no Porto. “É uma letra muito trans, esta. A margarida quer ser outra planta”, comenta, distraído, Rubén Heras, entre o som das castanholas e dos seus próprios tacões, que batem freneticamente no chão.
Roupa flamenca, maquilhagem drag: Rubén e Jero Férec já estão prontos para a performance que irá, durante uma hora, deixar uma sala a cantar “olés”, entre bulerías e fandangos, piruetas e desfile, muitas palmas e ainda mais, muitos mais, olhos nos olhos.
Por agora, Jero, um inglês (“Tão intenso, que foi rejeitado pela própria rainha Isabel II e enviado para Barcelona, onde foi carinhosamente acolhido”, ri Rubén), ainda afina as cordas e aquece os dedos, enquanto acerta os últimos detalhes de uma performance que vive do improviso, do clima do momento e que "nunca é igual".
Depois de algumas tentativas de se mudar para Espanha, o guitarrista acabou por se fixar permanentemente em 2016 e, um ano depois, conheceu o parceiro: “Conhecemo-nos quando trabalhávamos no Palacio Del Flamenco, em Barcelona, mas acabamos por seguir caminhos diferentes. Voltámos a cruzar-nos num projecto que olhava para as intersecções entre voguing e flamenco”, vai contando.
E como é que os dois estilos se podem cruzar? Historicamente, “de forma nenhuma”. Mas “se olharmos para a forma como o flamenco e o voguing eram usados como linguagem rítmica e visual, e como saíram de comunidades e minorias oprimidas”, há pontos de contacto.
É também na essência do voguing — sem o usar, por não se sentir “legitimado” (o estilo de dança surgiu nas comunidades negras e queer, nos ballrooms de Nova Iorque nos anos 80) —, que Rubén se inspira para dançar: como numa passerelle, há poses estéticas, linhas definidas, pouco medo de encarar. A ideia é mesmo fazer lembrar as modelos.
É assim quando o espectáculo começa. O bailarino entra na sala de olhos postos nos do público, que está mesmo ali, a meros centímetros, não há palco, não há distância, só há intimidade. Mas aquele par de olhos não se deixa ameaçar pelos cerca de 80 que o olham de volta. Fibra de bailarino que estudou no Conservatório de Barcelona, onde aprendeu ballet, contemporâneo e dança espanhola. “As pessoas pensam que as drag queens só existem para a noite e festas, mas também somos artistas, também estudamos”, diz.
O Flamenco Queer nasceu oficialmente em 2019, quando Rubén e Jero, agora com 26 e 30 anos, perceberam que “as noites ocasionais em que davam show num bar”, e que eram mais um pretexto para se “vestirem, maquilharem e expressarem como não era possível nos espaços tradicionais”, esgotavam todos os meses.
Actualmente, o duo trabalha em colaboração com diversos artistas — as apresentações desta quinta, sexta e sábado (às 23h no Café Lusitano) contam com a voz de Ana Lorenzo —, mas são eles a essência do Flamenco Queer. Uma imagem que remonta ao “início do século XX e até 1970”: “Era muito típico ter dança e guitarra num show de flamenco. Isto acabou por ser visto como incorrecto. Então, quisemos dar um pequeno twist e voltar ao flamenco tradicional, mas vestidos assim”, diz Jero, enquanto desliza as mãos pelo corpo. “Somos flamencas, mas também travestis.”
A luz vermelha já está baixa, o público sentado, o cigarro de Rubén tem de ficar a meio: é hora do espectáculo. Dale, dale, canta Ana. E isso dá força às cordas de Jero, que dá força aos sapatos do bailarino, que dá força aos aplausos do público que, por uma hora, podia jurar estar num tablao.