Depressão pós-parto: o lado sombrio da maternidade
A fotógrafa Rachel Papo sofreu, por duas vezes, depressão pós-parto. A experiência levou-a a procurar mais mulheres na mesma situação e lançar o livro It’s Been Pouring, que reúne os seus testemunhos.
Julia sabia que, após o nascimento do filho, iria andar exausta. “Mas eu acho que não percebia o quanto a privação de sono iria afectar-me”, relatou a mãe recente à fotógrafa norte-americana Rachel Papo, autora do fotolivro It’s Been Pouring, dedicado ao tema da depressão pós-parto (DPP). “Eu não fiquei simplesmente cansada. Algo tomou conta do meu corpo todo e da minha mente, e não conseguia ultrapassar isso para conseguir sentir algum tipo de alegria."
Quando o bebé nasceu, Julia não conseguia dormir e mal conseguia comer. “As pessoas diziam-me que o meu filho estava a ser afectado pela minha ansiedade, mas eu não conseguia simplesmente desligá-la.” Tornou-se um ciclo vicioso, contou. “Ele chorava porque eu estava ansiosa e eu estava ansiosa porque ele chorava.”
Era durante a noite que sentia maior pressão. “As noites assustavam-me”, recordou. “Sabia o que me esperava”, aludindo ao choro persistente da criança. Em momentos de desespero, Julia dava por si a gritar com o bebé. “’O que foi? O que queres?!’ Olhava para ele e não sentia… ou seja, eu sentia amor por ele, mas também sentia muito ressentimento.”
Antes de engravidar, Julia considerava-se uma mulher produtiva, que vivia para “riscar objectivos da lista”. Ter um filho era um desses objectivos. “Tinha uma imagem na minha cabeça de mim e do meu marido a caminharmos pela rua, num belo dia de Primavera, com um carrinho de bebé.” Quando o filho nasceu, a imagem materializou-se, sim, mas não era alegria que Julia sentia; o seu batimento cardíaco, acelerado pelo pânico de lidar com o bebé a chorar, era arrebatador e não lhe dava espaço para sentir outro tipo de emoções. “Era como se alguém estivesse a pressionar o meu tórax a toda a hora.”
Depois do parto, a rotina de Julia mudou, a relação com as pessoas que lhe eram mais próximas também; mas, mais do que isso, Julia tinha, ela própria, mudado. “Nem sequer conseguia tratar da minha roupa; estava tão sobrecarregada”, recordou. “Isso foi estranho para mim. A minha identidade tinha-se alterado. Eu era uma pessoa muito capaz e isso mudou.”
A experiência da maternidade com que Julia tinha sonhado, no passado, chocava de frente com a realidade. “Eu não sentia aquela ligação com o bebé de que as pessoas falam e… sentia-me culpada por isso porque eu quis muito ter um bebé. Pensava ‘o que é que está errado comigo? Tenho tudo aquilo que desejei’. O meu marido lembrava-me constantemente: ‘isto é aquilo que nós quisemos; ele é saudável e nós desejámos tê-lo’, dizia. E eu sentia-me tão egoísta por pensar ‘pois bem, eu já não quero’.” A jovem mãe sentia que “o mundo lá fora estava a girar, que coisas estavam a acontecer, que as estações estavam a mudar” e que “continuava presa ao sofá, a não poder participar”. “Nem sequer conseguia imaginar como tornaria a fazer parte dele.”
Julia é apenas uma de 12 mulheres com DPP entrevistadas pela fotógrafa Rachel Papo, que incluiu nas páginas do fotolivro editado pela Kehrer Verlag, entradas do seu próprio diário que se referem ao período em que, também ela, e pela segunda vez, enfrentava a depressão pós-parto. “Como é que eu me fui meter nisto outra vez?”, perguntava-se em Outubro de 2013, numa das transcrições.
Em entrevista ao P3, Rachel recorda que, durante os períodos de depressão, sentia que a sua mente e corpo tinham sido “invadidos” por uma espécie de “espírito negro” que não a deixava operar. “Eu estava lá, sabia o que estava a acontecer, podia observar, mas estava totalmente impotente, incapaz de fazer fosse o que fosse.” O impacto dessas duas crises, associadas ao nascimento dos seus filhos, fez com que se interessasse pelo tema e dedicasse um longo período ao desenvolvimento do projecto que deu corpo ao fotolivro.
O peso da expectativa e do preconceito
Existem vários factores que podem contribuir para a formação de um quadro de depressão pós-parto (que não deve ser confundido com o baby blues, um estado de melancolia que afecta oito em cada dez mulheres nas duas semanas após o parto e que decorre do processo de reequilíbrio hormonal). Esses têm que ver com a existência de um historial anterior de depressão ou ansiedade, com a falta de apoio familiar durante os primeiros meses de maternidade, com a existência de dificuldades financeiras ou conjugais. Ter uma experiência traumática durante o parto e/ou ficar com sequelas físicas podem também contribuir para a formação do quadro depressivo.
Mas não só. Ter expectativas pouco realistas relativamente à maternidade pode ser também um factor decisivo. Uma das mulheres entrevistadas por Papo, Carolina, contou à fotógrafa que “nunca tinha ouvido dizer que um parto poderia ser tão difícil”. Após nascimento do filho, a colombiana ficou com problemas ginecológicos que contribuíram na formação do seu mal-estar. “Venho de uma família numerosa, muitos primos, tias e tios e nunca me pareceu que alguma das minhas tias mostrasse o mais leve sinal de depressão pós-parto.”
Acontece que a família de Carolina é católica. “Essas questões [relacionadas com DPP] podem ser especialmente secretas” nesse contexto, observa. “Enquanto eu estive grávida, nunca soube que há pessoas que odeiam as suas gravidezes e que isso não tem mal nenhum, que há pessoas que ficam severamente deprimidas e que precisam de ajuda.” Acredita que se essas histórias fossem mais visíveis teria tido mais ferramentas para lidar com a sua depressão pós-parto.
Joanne, outra mulher entrevistada, acredita que “as pessoas só colocam nas redes sociais uma experiência de maternidade muito calculada”, o que contribui para a manutenção dos vários preconceitos ou mitos que condicionam a percepção e expectativas das mulheres, dos pais e de todos os que rodeiam o recém-nascido. “Lia [após o parto] imensos blogues para mães. Todas [as bloggers] tinham bebés com a mesma idade do meu filho e pareciam ter saído directamente de um catálogo, sem denotarem qualquer desconforto, pareciam saber exactamente o que fazer – como se fossem super-mães. E eu estava ali a comparar-me com elas constantemente, a sentir-me absolutamente miserável. Mas elas só poderiam estar a fingir.”
Onde começa, onde acaba e como prevenir a patologia
Alguns dos depoimentos recolhidos por Rachel são de mulheres que parecem genuinamente arrependidas de se terem tornado mães, que parecem sentir-se pouco aptas ou não apreciar, de facto, grande parte dos aspectos das suas novas vidas. Mas onde está a linha que separa a depressão clínica de um sentimento legítimo de arrependimento ou de rejeição do novo papel? Será uma mãe descontente ou arrependida automaticamente uma mãe doente que sofre de depressão pós-parto? Deve uma mulher simplesmente arrependida, desiludida ou descontente com o seu novo papel ser medicada para a depressão?
Papo afirma que “quaisquer sentimentos de arrependimento ou similares que foram expressos pelas mães” para a elaboração deste livro “são uma consequência de depressão pós-parto”; a norte-americana sabe que todas foram diagnosticadas com a doença e que, no momento das entrevistas que conduziu, estariam ainda deprimidas ou teriam sido consideradas curadas há relativamente pouco tempo.
“É do conhecimento geral, actualmente, que a depressão pós-parto, embora seja reconhecida e definida como uma doença clínica, também está associada à reacção das mulheres às circunstâncias em que são mães, como por exemplo, o seu estatuto económico, social, as suas expectativas e as de quem as rodeia relativamente à maternidade.” Em todo o caso, Rachel não acredita que as mulheres que entrevistou se arrependam, hoje, de terem sido mães. “Tanto quanto sei, todas estão contentes no seu papel e todas tiveram, pelo menos, mais um filho nos anos seguintes.”
Estar profundamente triste por períodos prolongados requer a visita a um médico. A fotógrafa de Brooklyn tentou, da segunda vez que sofreu depressão, evitar a toma de medicação anti-depressiva, mas concluiu que foi um erro. Recorreu, primeiro, à homeopatia, e não obteve os resultados que esperava. "Não durmo desde a 1h30 e estou a perder o juízo. Tenho pensamentos obsessivos sobre não ter ouvido o médico, ontem, já que ele me poderia ter dado medicação para dormir", escrevia em 2013. "Em vez disso, insisti nos que eu queria tentar."
A privação de sono, um dos problemas apontados por quase todas as mulheres que Rachel entrevistou, pode causar danos físicos e psicológicos significativos – nomeadamente fadiga extrema, dores musculares, visão turva, dificuldades de concentração, lapsos de memória, incapacidade de tomar decisões, irritabilidade, ansiedade, stress pós-traumático e até mesmo psicose (recorde-se que é uma forma de tortura antiga e condenada por organizações internacionais de direitos humanos por ser tão nefasta para a saúde humana e tão dolorosa para quem é submetido.)
Durante os primeiros meses de vida do bebé, o sono da mãe é constantemente interrompido, o que pode explicar muitos dos sintomas que se associam à depressão pós-parto. Assim, dormir pode ajudar as recém-mamãs a evitar a depressão, motivo pelo qual deve ser criada, por quem as rodeia, uma estrutura de apoio que permita à mãe descansar tempo suficiente para se manter saudável.