A interrupção de um olhar

Fora uma fragilidade do seu amor, que se permitia a intervalos, que provocara a tragédia.

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Enquanto a irmã gorda lia este e outros poemas, a Sãozinha rezava e pensava na mãe e imaginava que o pai e a irmã a viriam buscar. Era outra forma de interpretar a poesia. Uma pessoa pode efectivamente ouvir as palavras e não as perceber ou entrar dentro do poema. Ou ainda deixar fugir um cavalo e correr com ele. Era assim que ela ouvia poemas, como um animal em fuga. O poema não a levava ao que o poema dizia, mas sim para um terreno que estava muito para lá do poema. Custava-lhe a ausência da mãe. Não sabia expressar o que sentia, porque ainda não tinha palavras suficientes para isso. Recordava-se bem da silhueta materna junto ao mar e o momento em que volta a tomar atenção às construções na areia. Depois, ao erguer os olhos, já não havia nada. Essa interrupção, entre olhar a mãe, deixar de a ver por olhar para a areia, e depois levantar os olhos e deparar-se com um espaço sem mãe parecia-lhe um momento crucial: se não tivesse tirado os olhos, se a tivesse fitado sem interrupção, aquilo não teria acontecido. Fora uma fragilidade do seu amor, que se permitia a intervalos, que provocara a tragédia.

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