Governo Lula obtém vitória importante, mas o “centrão” ainda não foi seduzido
Câmara dos Deputados aprovou a primeira versão do arcabouço fiscal, um conjunto de regras que limitam a despesa pública, com votos da direita, incluindo bolsonaristas.
O Governo brasileiro alcançou uma vitória significativa com a aprovação de um muito aguardado conjunto de regras que regulam as contas públicas, conhecidas popularmente como “arcabouço fiscal”. O apoio ao diploma na Câmara dos Deputados foi expressivo, mas o Presidente Lula da Silva ainda não tem à sua disposição uma base parlamentar sólida que lhe garanta a governabilidade.
Na sessão de terça-feira, 367 deputados deram o “sim” para que a proposta do arcabouço fiscal fosse aprovada, um número bastante acima do limiar de 257 votos para a obtenção da maioria absoluta na câmara baixa do Congresso brasileiro. Grande parte do sucesso ficou a dever-se ao apoio dado pelas bancadas do chamado “centrão”, instrumentais para a aprovação da generalidade dos diplomas legislativos, mas até houve votos favoráveis de mais de 30 deputados do Partido Liberal (PL), de Jair Bolsonaro.
A oposição mais férrea ao arcabouço fiscal veio de parte das bancadas dos partidos de esquerda que apoiam formalmente o Governo. Os deputados do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e da Rede votaram contra o diploma e entre os parlamentares do Partido dos Trabalhadores (PT) houve várias críticas à legislação, apesar de votos favoráveis.
Os deputados do partido governamental disseram ter dado luz verde ao projecto apenas por lealdade a Lula, mas lançaram duras críticas ao projecto de regulação da despesa pública.
O arcabouço fiscal vem substituir o anterior “tecto de gastos” que estava em vigor desde o mandato de Michel Temer e que era criticado abundantemente pelo PT e pela esquerda. Durante a campanha eleitoral, Lula defendeu o fim desta limitação para poder ter maior liberdade na aplicação de políticas sociais, mas depois de eleito passou a defender apenas a substituição do modelo.
O arcabouço fiscal fixa uma série de regras que limitam os gastos públicos para evitar uma subida abrupta da dívida pública. Por ser visto como uma medida que assegura responsabilidade orçamental da parte do poder executivo, a legislação era muito aguardada pelos principais actores económicos – a bolsa brasileira reagiu de forma positiva à apresentação do projecto legislativo, no final de Março.
O Governo conseguiu, ainda assim, aliviar os limites à despesa com programas públicos de saúde e de educação. Outro ponto importante destacado pela imprensa foi a inclusão de uma garantia que impede que o salário mínimo seja congelado ou que o Bolsa Família deixe de ser pago caso o tecto de despesa pública seja ultrapassado.
A ampla aprovação da primeira versão do arcabouço fiscal – ainda pode sofrer pequenas alterações pela Câmara e terá depois de ser aprovado pelo Senado – foi celebrada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, que disse que o apoio expressivo se deve ao facto de se tratar de um “texto equilibrado”. “Tanto que posições mais à direita e à esquerda convergiram em votar determinadas matérias”, acrescentou, citado pela Folha de S.Paulo.
A viabilização da proposta é também uma vitória do ministro das Finanças, Fernando Haddad, que passou o último mês em intensas negociações com praticamente todas as bancadas parlamentares. “É possível, com um bom projecto, você angariar o apoio expressivo dos parlamentares”, afirmou em declarações aos jornalistas.
Apesar do sentimento de missão cumprida nos corredores do Palácio do Planalto, a ampla aprovação do arcabouço fiscal não significa necessariamente que o Governo tenha conseguido finalmente assegurar uma base parlamentar sólida na Câmara dos Deputados. Desde logo porque o consenso entre o Governo e as bancadas mais numerosas, sobretudo de direita, acerca da necessidade de regras que regulem a despesa pública não permite que o arcabouço fiscal funcione como um barómetro rigoroso do apoio parlamentar ao executivo.
“Houve uma guinada muito forte à direita nas eleições para o parlamento [em 2022], e o empenho de Lira foi fundamental. Mas isso aconteceu porque o arcabouço também era importante para Lira”, observa a professora de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Carla Beni, citada pela BBC Brasil.
Na verdade, há indícios de que as bancadas do “centrão”, com Lira à cabeça, não estejam ainda alinhadas totalmente com Lula. No início do mês, a Câmara dos Deputados chumbou um pacote legislativo sobre saneamento básico, desferindo um golpe inesperado nas intenções do Governo, e que foi lido como um aviso à navegação.
Como sempre, a governabilidade no Brasil parece estar dependente da disponibilidade do Governo federal em colocar à disposição dos líderes do “centrão” cargos públicos, postos ministeriais e, sobretudo, emendas financeiras. Na ressaca da votação, Lira deixou um novo aviso: “Todos têm que entender que o Congresso brasileiro conquistou maior protagonismo.”