Antes de a irmã gorda apagar a luz

Calmamente fez pousar as palavras do poema justo, como hóstias, na boca do poeta, e esperou que elas se dissolvessem na língua.

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Antes de a irmã gorda apagar a luz, dizia poemas, poemas que as outras irmãs julgavam ser de antigos livros de horas (algo que lhe tinha dado a ideia para um plano maior, muito maior), mas na verdade o que a irmã gorda recitava eram poetas modernos, especialmente Petar Stamboliski, autor búlgaro suficientemente obscuro para lhe ser prestado um culto que transcendia a obra. De facto, este livro era uma antologia de poemas que Stamboliski dizia serem de fonte anónima, mas havia quem considerasse serem de sua autoria. A irmã gorda atribuía cada um desses poemas recitados às meninas a, por exemplo, São Moisés o Negro ou a abba Doroteu de Gaza ou a amma Sinclética, nunca deixando de o fazer com o receio justificado de poderem um dia descobrir que o que lia ou dizia era perigosamente profano, apesar de todos os factos demonstrarem com clareza estonteante que quem a ouvia não só não percebia o que era pronunciado como não prestava qualquer atenção ao conteúdo e o que sobrava desses momentos eram somente algumas palavras do léxico quotidiano, palavras como «anjos», «Deus», «Céu». E assim, a irmã gorda, firmemente de pé, exultava e fremia, agónica, balançando as ancas num movimento subtil que não condizia com a cara de êxtase, e bendizia Deus por ter posto palavras tão bonitas na boca de um homem. Era quase um desperdício que a beleza fosse gasta em palavras na boca de um homem, junto do bigode e da barba. Ficaria melhor nos lábios de uma criança. Sim, de uma criança, mas Deus lá sabe, preferiu um poeta búlgaro, abriu-lhe a boca, devagar, com os seus dedos grossos, e calmamente fez pousar as palavras do poema justo, como hóstias, na boca do poeta, e esperou que elas se dissolvessem na língua e fossem pronunciadas, que fossem anjinhos a levantar voo, a esvoaçar na boca, a evadirem-se pelos lábios entreabertos, já materializados num poema.

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