Uma ave rara passou por Matosinhos. Era um pintarroxo-trombeteiro
Quando iniciamos uma etapa nova nas nossas vidas, podemos medir algumas das vantagens e desvantagens que ela nos trará, mas dificilmente conseguimos imaginar tudo o que daí pode vir. Comigo, foram as aves.
Antes de o Azul existir fiquei algum tempo a fazer Ambiente para o jornal. Pouco tempo, pouca coisa, muito por culpa da pandemia que se intrometeu nesses planos, acabava eu de chegar a essa área; mas o suficiente para deixar uma marca que ainda persiste – sob a forma de aves.
Até começar a escrever alguns trabalhos que envolviam aves, estava muito pouco consciente da variedade de espécies que havia à minha volta. Sobretudo de passeriformes, as pequenas aves que integram esta ordem e que estão por todo o lado, sob a forma de pardais, piscos, pintarroxos, chapins, pintassilgos, toutinegras ou milhares de outras. Para mim, até essa altura, era tudo pardais.
Cada pássaro que via a saltitar no topo de uma árvore, num jardim, no relvado à porta de casa era um pardal. Mesmo que não fosse. Com a vantagem de ter conhecido investigadores e defensores das aves, percebi que não. Comecei a distinguir alguns cantos e nunca dou por certo quem será o autor do movimento que detecto entre os ramos de uma árvore.
Com o entusiasmo de ir descobrindo que o meu mundo estava povoado de muito mais criaturas do que as que imaginava, comecei a levar a máquina fotográfica nas caminhadas que faço. Comprei o Guia de Aves, para me ajudar na identificação, e ganhei um novo passatempo, que me descontrai e me alegra, sobretudo de cada vez que consigo juntar uma espécie nova à lista de retratados.
Na semana passada, num dia de folga, fui almoçar à beira-mar, na zona de Angeiras, em Matosinhos, e, como de costume, levei a máquina fotográfica. Depois de me esforçar por terminar a dourada de mar, com legumes e batata a murro, decidi ignorar a ventania e ir dar uma volta nos passadiços.
Andava entretida a fotografar os borrelhos-de-coleira-interrompida, os cartaxos, rabirruivos e rolas-do-mar que por lá havia, além de um casal de pintarroxos, sempre próximos um do outro, a debicar nas dunas. E as dunas estavam lindas. Libertas dos chorões, naquela zona da praia das Pedras Brancas, em Matosinhos, estavam sarapintadas de flores coloridas, pequeníssimos tufos de vários tons de verde, em torno dos quais se afadigavam borboletas-cauda-de-andorinha e outras. E foi então que o vi.
Um pequeno pássaro diferente de tudo o que já encontrara. Em tons rosados, com bico rosa-escuro, muito perto do casal de pintarroxos que fotografara há instantes. Estava pousado na duna, saltitando entre cardos e restante vegetação, e não pareceu incomodar-se com a minha presença. Deixou que eu o fotografasse durante bastante tempo, saltitando areia fora, sem se afastar demasiado. Até que levantou voo e partiu.
Percebi que nunca me tinha cruzado com algo igual a ele. O meu primeiro pensamento é que era uma variedade de periquito, que teria fugido de uma gaiola. Só à noite, quando me sentei em frente ao computador, depois de descarregar as imagens, é que percebi o que era.
Como estava convencida que devia ser um parente qualquer do periquito, comecei por o procurar no Google, através de uma das fotografias que tirara. Mas as hipóteses que ele me dava não me convenceram. Apareciam umas aves muito parecidas com a que tinha visto, mas o bico não era rosa-escuro ou vermelho e, além disso, a ave de que falava a Internet existia em países do Médio Oriente, como a Jordânia, o que me parecia pouco verosímil.
Peguei então no Guia de Aves e não demorei muito tempo a encontrá-lo. Ali estava o seu desenho, perfeito, igualzinho ao que eu tinha visto nessa tarde, desde o padrão das asas ao bico colorido. Era um pintarroxo-trombeteiro. Um macho, já que as fêmeas são acastanhadas. Mas havia mais um pequeno problema. Os mapas que acompanham as espécies neste fabuloso guia não mostravam a existência desta ave em território nacional. No Norte de África, sim. Numa parte muito pequena do Sul de Espanha, também. Mas em Portugal, nada.
Recorri à minha outra referência, a página Aves de Portugal. O pintarroxo-trombeteiro está lá, mas com uma designação especial. Diz que é uma raridade; que os seus avistamentos têm de ser homologados pelo Comité Português de Raridades (CPR). E, no final do texto explicativo, traz uma curtíssima lista de avistamentos homologados, todos no Sul do país e o último dos quais em 2017.
Recorri então a dois dos meus contactos na área das aves. Enviei-lhes fotos e brinquei: parece que me cruzei com uma raridade. Confirmaram que era assim e um deles enviou-me a página do CPR, em que podia registar o avistamento: onde, quando e que espécie vira. Fi-lo de imediato e, na resposta ao email automático que recebi, adicionei algumas fotografias da tarde.
No dia seguinte tinha uma resposta entusiasmada. Era o primeiro registo de um pintarroxo-trombeteiro a norte do rio Tejo que recebiam. Eu já andava a sorrir desde o dia anterior. Afinal, não é todos os dias que nos cruzamos com uma raridade. E nunca esperara fazê-lo. De facto, tal coisa nunca me passara pela cabeça.
Poucos dias depois, em conversa com um amigo, ele convenceu-me a partilhar as fotografias num dos grupos de Facebook onde, diariamente, várias pessoas colocam as imagens de aves que vão fotografando. Ainda resisti, mas acabei por ceder. E a reacção foi fabulosa.
Centenas de pessoas viram as fotografias e reagiram a elas. Poucas horas depois, pediam-me, por mensagem, para partilhar o pequeno trombeteiro noutra página que eu desconhecia, e que se dedica a aves raras avistadas em Portugal. Juntei-me ao grupo, partilhei, e o entusiasmo foi igual.
A praia das Pedras Brancas recebeu um visitante inusitado. Um turista acidental com que a maior parte das pessoas nunca se cruzou na vida. No dia seguinte voltei lá, mas não o voltei a ver. Não sei se ainda por lá anda ou se já partiu. Se terá companheira, que se manteve longe de mim naquela tarde, ou se é um solitário. Se se perdeu ou, simplesmente, voou um bocado longe de mais, afectado pelas altas temperaturas e tempo seco que o podem ter levado a confundir o nosso território com as zonas áridas e desérticas onde vive.
Mas sei que centenas de pessoas ficaram felizes por saber que ele existia. Aqui no Norte, em Matosinhos. Mesmo que fugazmente. Cruzarmo-nos com uma raridade uma vez na vida já é algo para ficar inscrito no livro de memórias.