Celebrar e eleger estátuas numa gala “fofinha” onde nada fica por dizer

Cidades de Bronze, da Visões Úteis, pode ser visto entre terça-feira e domingo na Praça da República. Uma gala “para toda a família” com alguns apontamentos “desagradáveis” para o país e o Porto

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Estátuas são construídas e destruídas desde o início dos tempos. Precisamos de novas? Os autores atiram a pergunta a quem for ver o espectáculo. Manuel Roberto / PUBLICO

O confronto com o passado vai instalando algum desconforto entre as anfitriãs e faz oscilar o tom da narrativa, entre a performance entusiasta e a crítica mais ou menos evidente. Kore e Galateia, apresentadores da primeira edição da gala de estátuas do Porto, estão na Praça da República para celebrar estas esculturas públicas e dar ao povo o poder de eleger a que resistirá naquela geografia – ou pelo menos assim planeiam. “Hoje vamos fazer História”, anuncia Galateia. “Mais do que isso, vamos fazer futuro”, acrescenta Kore. A agência do futuro, entidade organizadora do evento fictício, foi criada para compensar a imperfeição da democracia, regime onde quem ainda não nasceu ou não vota fica de fora. E garante ter “tudo previsto”. Terá mesmo? A nova produção da Visões Úteis está no jardim desta praça do Porto a partir de terça-feira e até domingo, sempre às 19 horas.

É “uma gala para toda a família”, vai repetindo uma das apresentadoras a reparar apontamentos menos desejados da outra. Carlos Costa, director artístico da Visões Úteis, apresenta o espectáculo Cidades de Bronze, num leve destapar do véu com ironia q.b.: “É uma dramaturgia para todos, mais ou menos fofinha, embora ao longo da coisa se torne algo desagradável.” A direcção e o texto são uma parceria sua com Jorge Palinhos, artista residente da companhia sediada em Campanhã. Com mestria, a dupla faz o espectador alternar entre o riso e o desconforto de quem vê as certezas abaladas, entre um acenar concordante e uma nova reflexão.

A primeira é óbvia: afinal, o que são as estátuas? “Uma forma de mobiliário urbano” (mais ou menos “como os ímanes do frigorífico, mas em grande”) ou “ideias para a eternidade”. “Aquilo que alguém aprendeu antes e nos diz que é importante não esquecermos depois”, talvez. Ou então pura “arte” e “escultura”. O debate está aberto.

O tema andava há uns bons seis anos a marinar pela Visões Úteis. Durante a pesquisa para outra produção artística, Carlos Costa descobrira a existência de catálogos de encomenda de estátuas durante a I Guerra Mundial. A vontade de saber mais sobre o assunto acendeu-se. E o mundo provou a pertinência do tema: em 2020, após a morte de George Floyd, repetiram-se em várias geografias episódios de remoção, destruição e vandalismo de estátuas representativas de pessoas ligadas a movimentos racistas e discriminatórios.

Em Lisboa, a estátua do padre António Vieira foi pintada com a palavra “descoloniza”. Na Virgínia, num “belo dia para a democracia” (citando o título de um artigo de opinião publicado no The Guardian), a estátua do general Robert E. Lee, símbolo do racismo nos EUA, foi removida de uma praça. Na África do Sul, estudantes removeram do campus universitário uma estátua de Cecil Rhodes, defensor da superioridade da raça branca e “arquitecto” do mapa do Apartheid. Na Bélgica, vandalizaram-se estátuas de Leopoldo II, monarca que orquestrou no Congo atrocidades a que muitos chamam genocídio.

NEG - 03 maio 2023 - visoes uteis - estatuas ensaio Nelson Garrido
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NEG - 03 maio 2023 - visoes uteis - estatuas ensaio Nelson Garrido

Depois de a poeira assentar, Costa e Palinhos puseram-se a caminhar pelo Porto em busca de um lugar para acolher e inspirar um espectáculo montado no espaço público (a entrada é livre, mas quem quiser lugar sentado deve reservá-lo para mail@visoesuteis.pt). E encontraram um caso “extremamente interessante” na Praça da República. Além da estátua da República, “a partir da qual se pode falar de muita coisa”, havia exemplares do padre Américo, de Pires Veloso e de Baco. “Parece que se pousam lá estátuas”, brinca Jorge Palinhos. Vasculhando arquivos, descobriram ainda que naquele mesmo local houvera outras estátuas: D. Afonso Henriques, agora no Museu Militar do Porto, e O Rapto de Ganimedes, na Cordoaria, já tinham morado por ali.

A dramaturgia foi sendo construída num “trabalho de grande negociação entre os desejos e as possibilidades”, brinca Carlos Costa. A ideia original era levar as duas estátuas antes instaladas na Praça da República de volta ao seu território original e compor o espaço cénico com elas. Não foi possível fazê-lo literalmente, mas as representações delas estão lá – e os acontecimentos foram vertidos no texto do espectáculo.

Percalço número um: a estátua de Ganimedes, representativa de um episódio mítico em que Zeus rapta um rapaz para fazer dele objecto sexual (hoje colocada junto a um parque infantil: gosto “inspirador”, provoca Galateia), apresentava “fragilidades” e, por isso, não podia ser sujeita a “movimentações de carácter efémero”.

Percalço número dois: após a assinatura de um protocolo com o exército, que cedeu a estátua de D. Afonso Henriques para a gala da Visões Úteis, nenhuma companhia aceitou fazer o seguro do rei. Pelo menos por um preço aceitável para uma companhia de teatro. É que o futuro, como diz a personagem Kore, “tem um orçamento limitado”. Carlos Costa abre o jogo num riso nervoso: “Avaliaram aquilo em 500 mil euros, decidimos não trazer a estátua.”

Albergues: a geografia humana

Uma outra realidade foi encontrada na Praça. Palavra a Jorge Palinhos: “A maior parte dos utilizadores são as pessoas que moram nos albergues [do Porto].” A vontade de bater à porta da IPSS que acolhe pessoas em risco de exclusão social, em particular em situação de sem-abrigo, foi imediata: “Tínhamos de nos relacionar com a geografia física, mas também a humana e social”, explica Carlos Costa.

Segunda-feira, 3 de Abril. Carlota Castro e João Martins, da Visões Úteis, orientam uma oficina de teatro na sede dos albergues, na Rua Mártires da Liberdade. É a segunda sessão. Antes, houve também oficinas de escultura orientadas por Marta Lima. Um leve aquecimento, bocejos com ruído para relaxar. E um exercício de criatividade e desbloqueador de timidez: “Vamos passar esta bola entre todos como se fosse uma coisa muito frágil”, sugere João. Sete utentes formam um círculo e vão cumprindo a tarefa. A bola que não é bola transforma-se num objecto “muito frágil” e depois “demasiado precioso”.

A reflexão iniciada dias antes é retomada. Os utentes pensam sobre a importância do albergue na vida deles e imaginam como desenhariam esse sentimento com o próprio corpo, como se fossem eles as estátuas. Carlos Quintas, natural de Freixo de Espada à Cinta e crescido em Espanha, estica os braços para cima: “Gracias, Dios.” Ana Silva, há um ano e meio a viver nos albergues, enconcha o corpo e explica: “É a sensação de ruído da qual queremos fugir, só queremos protecção.”

As frases surgem umas atrás das outras. “Na minha pele há uma história, a minha identidade”; “Sê bem-vindo”; “Vamos à luta”. Carlota e João vão lançando acendalhas para a reflexão. E resumem emoções dos percursos naquela casa à qual qualquer um pode chegar numa curva da vida: vulnerabilidade, fragilidade, abandono. E, finalmente, acolhimento.

Para Liliana Novo a palavra é simples de eleger: “Lar.” diz a mulher de 40 anos ali chegada na fuga de uma relação tóxica e violenta. “Pus um ponto final e saí de casa. Vim parar aqui.” O mundo das artes é novo para ela. Mas a ousadia de vencer a personalidade “reservada” já valeu a pena: “Ganhei confiança com os outros e reforcei laços”, conta, semanas depois da oficina. Ao lado, Ana Silva nota semelhanças no percurso das duas. Também ela fugiu da violência, também ela encontrou nas artes um abrigo.

Foi, na verdade, a chegada ao sonho. Ainda que por vias improváveis. Os pais nunca apoiaram a sua vontade de fazer profissão da dança, canto e teatro. Mas através dos albergues foi cumprindo essa vontade. É uma das actrizes do grupo de teatro Do Lado de Fora, composto por pessoas em situação de exclusão, e agarra todas as chances: neste momento está também em ensaios num projecto da PELE.

O envolvimento dos Albergues do Porto com a cultura é parte da estratégia de abrir as portas da instituição à cidade. Manuel Roberto / PUBLICO
O envolvimento dos Albergues do Porto com a cultura é parte da estratégia de abrir as portas da instituição à cidade. Manuel Roberto / PUBLICO
O envolvimento dos Albergues do Porto com a cultura é parte da estratégia de abrir as portas da instituição à cidade. Manuel Roberto / PUBLICO
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O envolvimento dos Albergues do Porto com a cultura é parte da estratégia de abrir as portas da instituição à cidade. Manuel Roberto / PUBLICO

O envolvimento dos Albergues do Porto com a cultura é parte da estratégia de abrir as portas da instituição à cidade. Quando assumiu o cargo de directora-geral, em Julho de 2021, Carmo Fernandes não demorou a identificar um dos maiores desafios que tinha em frente: “Tornar estas pessoas visíveis e dignificá-las”, aponta a directora-geral. Essa “virtude” cabe em iniciativas como a da Visões Úteis, que conta com o apoio da Câmara do Porto. A partir de 2 de Junho, parte do trabalho desenvolvido com os utentes servirá também de base à nova exposição da Alberg’art, a galeria de arte dos Albergues do Porto.

Invisibilidade

Robert Musil, escritor austríaco, apontava com ironia não haver nada mais invisível do que os monumentos públicos. Carlos Quintas, por estes dias a dormir nas ruas da cidade, não concorda. Mesmo antes de o projecto da Visões Úteis o alertar para o tema, era um observador. “Gosto de as ver, a minha preferida é a do rei [D. Afonso Henriques]”, diz, enquanto nota, emocionado, uma triste coincidência: “Eu, sim, já me senti invisível e ignorado.”

Jorge Anjos, nascido em Salvador da Bahia, chegou a Portugal há dois na busca do sonho europeu: "Segurança, saúde, educação." No Porto, a trabalhar na construção civil, viu-se sem chão numa casa inabitável. Adoeceu. O fim da linha levou-o à linha de emergência: 144. Os albergues são agora espaço de segurança e transporte para o sonho ainda por cumprir: "Em breve hei-de ir para a Suíça", acredita. Sobre estátuas pouco sabe, mas não hesita se a pergunta é quem ou o quê mereceria uma: "Faria um monumento à paz."

Desconhecimento, indiferença ou familiaridade. A relação com as estátuas é oscilante, perceberam os autores da gala. Num dos ensaios finais para o espectáculo, já na Praça da República, um cidadão notou a estátua representativa da República por haver andaimes à sua volta e perguntou à equipa se a escultura era nova. No sentido oposto, outro transeunte partilhou memórias do tempo em que D. Afonso Henriques ali estava.

Nesse sentido, Cidades de Bronze pode ser um gatilho, acredita Carlos Costa: “Ao falar sobre um assunto muitas vezes as pessoas reflectem sobre ele.” Ao lado, Jorge Palinhos partilha a sua experiência: “Aconteceu comigo. Agora estou sempre a prestar atenção às estátuas, antes não acontecia."

A estátua da República está rodeada de andaimes, D. Afonso Henriques e Ganimedes representados num painel. Há um perímetro de “escavação arqueológica”, com baldes pretos e ferramentas, um contentor, um painel em construção. Kore e Galateia – interpretadas por Sofia Santos Silva e Matilde Cancelliere – interagem com o público, apresentam as estátuas, espicaçam o pensamento sobre aspectos culturais, históricos, simbólicos e estéticos. Marta Lima, escultora e representante da agência do futuro, vai esculpindo massa de pão durante os 60 minutos do espectáculo (pão que será dado a comer a quem ali estiver, literalmente). A banda ohmalone (João Martins, João Tiago Fernandes, José Miguel Pinto) garante a animação de gala.

Carmo Azeredo, a estudante universitária que posou para o escultor Bruno Marques, autor d’A República, também participa. Aos 21 anos, aceitou o trabalho de modelo para ajudar a pagar as propinas. Mas viu o seu corpo “franzino” ser substancialmente alterado: tudo para dar uma imagem forte da República. Uma década depois, um auto-retrato de Carmo, grávida, carrega uma mensagem.

Apontamentos “desagradáveis” que fazem mexer a narrativa: dúvidas sobre a ausência de dúvidas em relação à República, os poderes do rei, os Descobrimentos, tiques nacionalistas e heróicos, feminismos esquecidos, um mundo que não gosta de artistas frágeis, uma cidade que não gosta de vagabundos e pessoas sem-abrigo. E duas propostas de novas estátuas: uma dos “cidadãos do futuro”, alunas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, outra do trabalho feito com os utentes dos Albergues.

Estátuas são construídas e destruídas desde o início dos tempos. Precisamos de novas? Os autores atiram a pergunta a quem for ver o espectáculo. Nele cabem respostas, entre linhas. Uma certa “efemeridade”, apesar do bronze e da pedra, diz Palinhos. “É uma ideia bonita”, aprecia Carlos Costa: “É uma eternidade à escala das nossas vidas.”

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