Unidos pela desgraça, os Coleman não têm conserto
O amor, ou o bem-estar, não pairam sobre a casa desta família inventada pelo dramaturgo argentino Claudio Tolcachir e agora levada à cena pelos Artistas Unidos.
É uma família muito engraçada, que tem um tecto, sim, quartos, cozinha e casa de banho, mas não tem mais nada, e onde cada um faz por si mesmo quando parece fazer também pelos outros. O amor, ou o bem-estar, não pairam como o canto de rouxinol em casa dos Coleman, é certo. Porém, às vezes, há um interesse comum e até parece uma família – enfim – normal. Mas passa depressa.
A peça que Claudio Tolcachir (n. 1975) criou em 2005, depois de laboriosos meses de trabalho com os actores da sua companhia, não procura, ao contrário de muitas outras obras teatrais sobre a família, apenas ilustrar as contradições e os interesses que conduzem inevitavelmente à sua disfuncionalidade e decadência e, de certo modo, à sua demência generalizada. A construção dramática sugere antes, embora com uma certa ligeireza, a intenção de compreender o que vai na cabeça daquelas personagens; o que as leva de disparate em disparate e de egoísmo em egoísmo; o que, contraditoriamente, as une em momentos de crise. Por outras palavras: como sobrevivem?
Contudo, o texto do dramaturgo, encenador e actor argentino não vai longe na caracterização das personagens, que surgem e evoluem em palco algures entre a caricatura e o estereótipo do desgraçado sem tino para se orientar mais do que o necessário à sua sobrevivência. O que tem a sua parte trágica, mas igualmente o seu lado divertido, por vezes mesmo cómico e carinhoso, permitindo à peça desenvolver a sua sucessão de quadros, às vezes quase freneticamente, como uma série de colagens de episódios e memórias que acrescentam algum contexto, contudo pouca substância.
É uma história, mesmo com as suas fragilidades, sem dúvida bem contada, todavia transportando o espectador para um território relativamente confortável, quando o desconforto perante a miséria moral e social pareceria mote mais apropriado.
Vamos, porém, aos, por assim dizer, factos. Após apresentações em 2009 como parte do Festival Fervor de Buenos Aires, a peça de Claudio Tolcachir está de regresso aos palcos portugueses, agora já não dirigida pelo próprio mas numa montagem dos Artistas Unidos. Em cena, a mãe (Ana Castro), os irmãos Gabi (Nídia Roque), Damián (Nuno Gonçalo Rodrigues), Marito (Vicente Wallenstein na mais bem conseguida das personagens, cuja inocência esconde uma espécie de profeta psicopata) e Verónica (Raquel Montenegro) – a única que por estudos e casamento fugiu ao fado familiar, embora regresse amiúde como quem vem ver como estão as coisas naquele lar onde decadência e absurdo são praticamente sinónimos e convivem com uma violência larvar. Quem mantém a família, digamos, junta, detendo alguma autoridade, é a avó (António Terrinha). Mais tarde, quando lhe der um treco e for parar ao hospital (que a família há-de aproveitar como se fosse um hotel), hão-de surgir Américo Silva, no papel de médico, e o mais misterioso Hermán (Hélder Braz), figuras que servem para pouco mais do que unir algumas pontas e indicar uma ou outra pista suplementar ao comportamento de Verónica, sem nada de substantivo acrescentarem à narrativa.
A dinâmica encenação de Pedro Carraca é, no entanto, demasiado obediente ao texto. Da sua direcção fica claro que não há neste enredo qualquer intenção de redenção, ou lugar para as habituais classificações morais entre crime e castigo, por assim dizer, pois o original não permite mais do que assinalar a normalidade que a miséria instala na decadência. O que, sendo uma perspectiva interessante, não é original e indica igualmente alguma condescendência, inscrita como um palimpsesto, mas latente em cenas em que a falta de densidade é compensada (e não resolvida) com recurso a instrumentos cénicos mais próximos da farsa, assim diminuindo o trágico dominante na existência daquelas vidas.