Carta aberta: sobre o Dia Nacional dos Jardins
A criação, pela Assembleia da República, do Dia Nacional dos Jardins (instituído a 16 de setembro de 2022), a celebrar anualmente no dia 25 de maio, data do nascimento do arquiteto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles (1925-2020), foi ideia proposta sob forma de petição pública por um grupo de jovens estudantes de Portimão. Esta iniciativa foi dinamizada por um docente do ensino secundário, o professor de Filosofia e de Cidadania e Desenvolvimento Carlos Café, grande admirador de Gonçalo Ribeiro Telles.
A ideia, transformada em decisão pela Assembleia da República, foi aprovada por unanimidade pelos partidos representados no Parlamento, e pode ser vista como um bom augúrio. Todos os partidos, incluindo aqueles que têm estado no Governo desde 1974, sentiram-se vinculados a respeitar a obra do homenageado e a pôr em prática o seu ideário.
Mas é forçoso ver tal unanimidade com alguma prudência e sentido crítico. São ainda muito comuns as situações, e algumas de grande gravidade, em que foi e continua a ser violado não só o espírito da obra do homenageado, mas também, não raro, a letra das leis de proteção do território, da natureza e do ambiente, que a ele devemos, e aos que com ele colaboraram. Violações sempre apoiadas no suposto “interesse público”.
Os parques, os jardins, as árvores estão, sem dúvida e de modo permanente, no cerne do pensamento e da ação de Ribeiro Telles. São, aliás, de sua autoria ou co-autoria algumas obras paisagísticas em Portugal que mais se destacam nas últimas décadas.
Mas no cerne do seu pensamento e da sua obra está também todo o território português visto na sua unidade e diversidade profunda, porquanto foi também promotor da REN – Reserva Ecológica Nacional — e da RAN — Reserva Agrícola Nacional —, que têm sido dilapidadas ao longo dos anos.
Esperemos que os promotores desta decisão da Assembleia da República, nas comemorações e acções que venham a pôr em prática, tenham em atenção não só a letra, mas também o espírito de toda a obra, pensamento e acção do homenageado, e façam da criação desse dia nacional algo mais do que um verniz cosmético ou uma celebração oca e convencional, tão ao contrário do homenageado.
Arte dos jardins
Para Francisco Caldeira Cabral, a arquitectura paisagista mobiliza simultaneamente a arte e a ciência, ao aliar uma arte muito subtil a uma técnica muito apurada apoiada numa ciência vasta. Organiza-se o espaço para a criação de beleza para satisfação lúdica do Homem. Eram estas as razões que o levavam a insistir em incluí-la nas belas-artes.
Celebrar a arte dos jardins como património natural e cultural implica acabar com a nefasta prática, frequente na administração central e local, de utilizar jardins, parques e espaços arborizados como locais que se podem mutilar, agredir e até demolir impunemente a pretexto desta ou daquela obra.
Para evitar intervenções pesadas e destrutivas, incluindo a ocupação desses espaços com estaleiros de obras, deverá algum tipo de avaliação de impacte ambiental estar presente, tendo em conta as suas dimensões e características, desde a concepção e não apenas quando já forem dados como irreversíveis trajetos, localizações e destruições ou mutilações de valores naturais, ecológicos e ambientais.
Importa igualmente sublinhar que, além da preservação do património em jardins e espaços verdes similares, é necessário criar novos jardins e espaços verdes em meio urbano. De facto, trazem consigo grandes benefícios por intermédio dos ecossistemas por eles criados, com relevo para a mitigação dos efeitos microclimáticos negativos das “ilhas de calor” nas cidades, da poluição atmosférica, funcionando como filtro e/ou barreira e das, cada vez mais frequentes, épocas de seca, sem esquecer os benefícios que trazem para a saúde física e mental de todos.
Por outro lado, através dos solos permeáveis que preservam e da criação de novos habitats para a flora herbácea e fauna que incentivam, criam uma protecção suplementar nos períodos de chuvas intensas e inundações, ampliando assim o “efeito de esponja” e de barreira à erosão do solo, cuja presença insuficiente foi bem evidente ainda no outono-inverno de 2022-2023.
A moda das “requalificações”
Embora a preservação de um jardim seja compatível com intervenções pontuais desde que no respeito do espírito originário que presidiu à sua concepção, sejam eles jardim de autor ou de tradição anónima, é necessário desincentivar a actual moda das “requalificações”, quando destroem elementos integrantes e essenciais de jardins e de espaços ajardinados preexistentes.
Em alternativa às “requalificações” simplistas e abusivas deve ser incentivada a criação de novos jardins de raiz. As intervenções no que já existe devem respeitar o património vegetal já plantado, respeitando igualmente os direitos dos seus autores, em grau idêntico àquele que todos reconhecem aos autores de obras de pintura, escultura ou arquitetura.
O suposto e o verdadeiro interesse público
A destruição ou mutilação de jardins, invocando declarações de suposto “interesse público”, deveria ser interditada e assumida como crime ambiental. O mesmo se passa com árvores e maciços arbóreos, seja por abate, seja por podas incorretas. Em teoria, a nova Lei n.º 59/21 de 18 de agosto, sobre o regime jurídico de gestão do arvoredo urbano, deveria interditar tais práticas. No entanto, ela é muitas vezes interpretada de modo laxista pelas autoridades, incluindo pelo próprio Governo, que se atrasa na publicação de regulamentações essenciais à aplicação desta lei.
Nas comemorações do Dia Internacional da Paisagem ocorridas no Porto, Oscar Bressane, colaborador do arquiteto paisagista brasileiro Roberto Burle Marx, recordou que árvores e jardins não devem ser tratados como coisas de que se pode dispor a bel-prazer, mas antes com respeito, já que são seres vivos.
No que se refere ao conjunto do território, e à forma como é desrespeitada a necessidade de preservar ecossistemas e valores naturais, multiplicam-se igualmente as declarações de “interesse público” que contradizem a legislação nacional e até desrespeitam compromissos contraídos em acordos, convenções e tratados internacionais. Factos tanto mais graves quanto é urgente, na situação mundial atual de alteração climática, proteger a biodiversidade, reserva e fonte de carbono acumulado e reguladora da qualidade do ar, água e solo, de modo a mitigar os efeitos negativos de temperaturas e secas extremas.
Como forma de respeitar e homenagear Gonçalo Ribeiro Telles, o Dia Nacional dos Jardins (25 de Maio) devia servir para relembrar a necessidade de aumentar e requalificar as manchas verdes urbanas, tornando-as mais naturalizadas e biodiversas, e assumir a preservação destes espaços e dos ecossistemas naturais como verdadeiro interesse público.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico
Primeiro autor
José Carlos Marques (Campo Aberto –associação de defesa do ambiente)
Subscritores
Maria Amélia Martins-Loução (Speco – Sociedade Portuguesa de Ecologia); Joaquim Pinto (Aspea – Associação Portuguesa de Educação Ambiental); Diogo Caetano (Associação Amigos dos Açores); Daniela Salazar (Associação BioLiving); Raimundo Quintal (Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal); David Iguaz (Movimento Unidos pelo Rossio – Aveiro); Joana Campos (Plataforma em Defesa das Árvores); ACER - Associação Cultural e de Estudos Regionais; Academia Cidadã; Acréscimo - Associação de Promoção ao Investimento Florestal; ADACE - Associação de Defesa do Ambiente de Cacia e Esgueira; Adep - Associação de Estudos e Defesa do Património Histórico-Cultural de Castelo de Paiva (Martinho Rocha); AEPGA - Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino - Atenor; Aliança pela Floresta Autóctone; Almargem - Associação de Defesa do Património Cultural e Ambiental; Alvorecer Florestal – Web e V. N. Gaia; APTS – Associação Portuguesa de Turismo Sustentável; Associação de Defesa do Paul de Tornada – Pato; Associação Dunas Livres; Cadep-CN - Clube dos Amigos e Defensores do Património Cultural e Natural da Ilha de St.ª Maria (Açores); Associação Espaço Vipa 1051 – Matosinhos; Associação Evoluir Oeiras; Associação Famalicão em Transição; Associação ReflorestarPT - Regeneração Ecológica e Social; Associação Vamos Salvar o Amor; Associação Vimaranense para a Ecologia; Chão do Rio – Turismo de Aldeia — Travancinha, Seia; Cidamb – Associação Nacional para a Cidadania Ambiental; Cisma - Associação Cultural – Covilhã; Clube UNESCO da Cidade do Porto; Colectivo HortaFCUL; Fapas - Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade; GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente; Glocal Faro; Grupo Olhar o Futuro com Ribeiro Telles; H2AVE; Instituto Zoófilo Quinta Carbone – IZQC; Íris – Associação Nacional de Ambiente; Liga Portuguesa dos Direitos do Animal - LPDA; LPN – Liga para a Proteção da Natureza; MAPA – Movimento Académico de Proteção Ambiental – Universidade da Beira Interior; Movimento Bem da Terra – Felgueiras; Movimento Jardim Martim Moniz; Movimento Peticionário Rua Régulo Megauanha — Porto; Movimento por um Jardim Ferroviário na Boavista – Porto; Mubi — Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta; NDMALO-GE — Núcleo de Defesa do Meio Ambiente de Lordelo do Ouro – Grupo Ecológico; Onda Verde – Associação Juvenil de Ambiente e Aventura; Palombar – Associação de Conservação da Natureza e do Património Rural; PCI – Paramédicos de Catástrofe Internacional; PUMI – Movimento Por Um Mundo Ideal; Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza; Renovar a Mouraria – Associação; Rio Neiva - Associação de Defesa do Ambiente; Salvar o Jardim da Parada; SEA – Sociedade de Ética Ambiental; Slow Motion Tours (Porto); Tagis — Centro de Conservação das Borboletas de Portugal; Tree Talk Gaia – Movimento pela Preservação de Espaços Verdes em Gaia Litoral; Verde – Associação para a Conservação Integrada da Natureza; Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável