Números de plástico: quem paga a factura?

As marcas que utilizam embalagens de plástico são obrigadas a financiar a reciclagem dos seus resíduos. Mas as autarquias e os contribuintes pagam boa parte da factura — os números não batem certo.

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A Sociedade Ponto Verde, criada em 1996, tem mais de 80% da quota de mercado na gestão de resíduos em Portugal Paul Tomlins/Eye Ubiquitous/Universal Images Group via Getty Images
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Grupos influentes de produtores de plástico são responsáveis pela recolha e reciclagem de resíduos em toda a Europa. As críticas a este sistema são cada vez mais fortes. Em Portugal, o ministro Duarte Cordeiro afirma: “Temos de reconhecer que este modelo de auto-regulação não tem sido eficiente. Um caminho que poderá ser pensado reside na reavaliação de um modelo de auto-regulação que não funciona adequadamente para um modelo de regulação com base numa entidade independente.”

O ministro diz estar preocupado porque Portugal tem “uma percentagem tão elevada de resíduos desviados para aterro, muito longe das metas estabelecidas para 2035”. “É evidente que não cumpriremos as metas intermédias e, se não adoptarmos medidas urgentes, dificilmente atingiremos as metas de 2035. Como se percebe pela minha resposta, tenho muita preocupação e muita insatisfação…”

Duarte Cordeiro pede uma “mudança de mentalidade de todas as entidades do sector em vez de procurarem minimizar os maus resultados ambientais do país em termos de reciclagem e gestão de resíduos para uma visão mais realista do problema”.

A principal dessas “entidades” é a Sociedade Ponto Verde, criada em 1996, que tem mais de 80% da quota de mercado na gestão de resíduos em Portugal (as outras duas são a Electrão e a Novo Verde, com margens residuais). Presidida por um ex-governante e ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos, António Nogueira Leite, a Ponto Verde junta a maioria dos principais produtores de embalagens. O seu principal accionista é a Embopar, que é a associação-chapéu das principais multinacionais como a Danone, a L'Oréal, a Nestlé, a Coca-Cola, entre muitas outras.

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Duarte Cordeiro: “Temos de reconhecer que este modelo de auto-regulação não tem sido eficiente" TIAGO PETINGA

Outra das entidades que o ministro refere é a própria Agência Portuguesa do Ambiente (APA), responsável pela gestão do sistema. A APA é um instituto público, na administração indirecta do Estado, sob tutela do Ministério do Ambiente, mas que tem “autonomia administrativa”. E nesse papel foi alvo de várias críticas na auditoria que o Tribunal de Contas publicou em Março do ano passado. A “Auditoria à Gestão dos Resíduos Urbanos de Plástico” revela, por exemplo, que uma das “fragilidades” apontadas ao sistema de gestão de resíduos é a não-existência de “uma quantificação rigorosa das embalagens introduzidas no mercado”. Ora, se os produtores de embalagens — sejam as grandes marcas de bebidas e cosmética, sejam os supermercados — não declaram todo plástico que põem no mercado, o valor que pagam passa, naturalmente, a ser inferior.

Isso mesmo constatou Rui Berkemeier, especialista em resíduos da associação ambientalista Zero. “No plástico, a principal falha é que os produtores cumprem sempre as metas, mas de forma artificial. Se há mais embalagens do que as registadas, é mais fácil cumprir as metas.”

O raciocínio de Rui Berkemeier é simples: se a taxa de reciclagem anunciada pelos produtores e pela APA estivesse certa, o lixo de plástico representaria apenas 3% do total de resíduos urbanos. Mas sabemos, por dados oficiais, que esses resíduos pesam, pelo menos, o triplo desse valor. E isso significa, conclui Berkemeier, uma “fuga gigantesca” das empresas ao pagamento do “ecovalor”, ou seja, da taxa a que são obrigadas para financiar o tratamento e reciclagem.

Falámos com um ex-responsável pela gestão de resíduos numa das maiores câmaras municipais do país, que concorda com a crítica dos ambientalistas: “Na realidade, a indústria está a fugir às suas responsabilidades. Se houvesse um preço mais alto pago pelos produtores, as tarifas municipais cobradas aos contribuintes seriam mais baixas.” Pelas contas da Zero, os municípios e os contribuintes estão a cobrir este défice com, pelo menos, 35 milhões de euros por ano.

Duarte Cordeiro, o ministro da tutela, conhece bem essa dívida oculta. Foi, durante vários anos, responsável pelo assunto na Câmara de Lisboa. Na entrevista que nos deu elogiou a auditoria do TC e aconselha a APA a tê-la em conta: “Preocupa-me e considero o relatório do Tribunal de Contas muito importante para este efeito. Espero que seja útil e seja considerado por parte das entidades com responsabilidades na regulação e gestão do sector, desde logo a APA.”

Ana Trigo Morais, administradora delegada da Sociedade Ponto Verde, reconhece que há uma “divergência de dados”, mas explica-a “pela utilização de diferentes critérios de cálculo”. Desde o início, adianta, “a metodologia adoptada para cálculo da taxa de reciclagem” baseia-se “no rácio entre quantidades recicladas e quantidades colocadas no mercado (não em quantidades de resíduos gerados), de acordo com as normas europeias em vigor”. Ana Trigo Morais garante: “A Sociedade Ponto Verde encontra-se a estudar este tema conjuntamente com a APA e INE para que se consiga adoptar uma metodologia que permita, de forma mais transparente, determinar a produção de resíduos urbanos, designadamente de embalagem de plástico em Portugal.”

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Em Portugal, não existe “uma quantificação rigorosa das embalagens introduzidas no mercado”, conclui uma auditoria do Tribunal de Contas Paulo Pimenta

“As nossas obrigações nesta matéria impendem sobre as embalagens que nos são declaradas pelos embaladores que aderem ao nosso serviço de compliance ambiental. Importa também relevar que à Sociedade Ponto Verde só são declaradas as embalagens que dão origem a resíduos urbanos. Porém, nos mapas que Portugal preenche enquanto Estado-membro da UE, a meta de reciclagem aplica-se a todas as embalagens, sem excepção, ou seja, há ainda que considerar a reciclagem das embalagens geradas no grande comércio e indústria. Reconhecemos ainda que tem sido crescente o número de embalagens colocadas no mercado e que não são objecto de declaração às entidades gestoras, gerando o que é designado por free-riding, sendo muito limitada a actual fiscalização das autoridades para combater e penalizar esta actuação, apesar do trabalho que a Sociedade Ponto Verde tem feito para incluir os embaladores responsáveis por vendas à distância (ex. sites internacionais de compras) no seu sistema de gestão. Na nossa opinião é fundamental reforçar a regulação e aumentar a fiscalização e a supervisão do sector para que todos contribuam para pagar o sistema”, conclui a administradora da principal gestora do sistema de resíduos.

Um pouco por toda a Europa, como constatámos, a situação repete-se. Os produtores de embalagens são os responsáveis pelos sistemas de recolha e tratamento do lixo, e os números quase nunca batem certo, seja em Espanha, em França, na Itália ou na Noruega. "O problema", diz-nos Flore Berlingen, antigo director da Zero Waste France, "é que privatizámos as políticas de gestão de resíduos, entregando-as a estas organizações. O que deveria ser uma questão de escolhas políticas e de debates públicos foi gradualmente delegado."

"Se compararmos os 1,6 mil milhões de euros de custos líquidos com os cerca de 644 milhões de euros pagos pela Citeo [a organização equivalente em França à Ponto Verde] às autarquias em 2021, verificamos que as autarquias ainda têm mil milhões de euros para pagar", diz um porta-voz da Amorce, a principal associação de municípios de França. A Citeo diz-nos que não pode comentar o caso, mas acrescentou que em 2021 apoiou as autoridades com 847 milhões de euros. Um porta-voz acrescentou: "Através destas contribuições ecológicas dos comerciantes, a Citeo financia 73% dos custos brutos de referência da recolha, triagem e tratamento das embalagens domésticas".

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Rui Berkemeier: “No plástico, a principal falha é que os produtores cumprem sempre as metas, mas de forma artificial. Se há mais embalagens do que as registadas, é mais fácil cumprir as metas” DR

Os municípios noruegueses não estão muito mais satisfeitos. "Pagamos mais de mil milhões de coroas norueguesas [cerca de 88,6 milhões de euros] por ano para tratar os resíduos de embalagens de plástico que os produtores deveriam ter financiado", diz Svein Kamfjord, director da Samfunnsbedriftene, uma organização que agrupa as empresas públicas de resíduos.

O governo das ilhas Baleares, em Espanha, fez dois estudos que questionam os números oficiais sobre o plástico comunicados pela Ecoembes, a associação de empresas embaladoras. Um dos relatórios indica que, em 2016, foram colocadas no mercado 49.385 toneladas de embalagens, ao passo que a análise dos fluxos de embalagens ao longo de toda a cadeia de valor situou esse número em 91.965 toneladas. Se os cálculos do governo das Baleares são verdadeiros, isso significaria que haveria 86% mais embalagens no mercado do que as declaradas pelos produtores. "Os resultados desses relatórios mostraram que o Ecoembes estava a induzir-nos em erro com os seus dados", afirma o autor do relatório, Vicenç Vidal. "Os seus dados não são de todo credíveis." A Ecoembes, por seu lado, afirma que os relatórios tinham "graves deficiências metodológicas" e que estudos posteriores refutaram os seus dados.

Em Portugal, há uma mudança em vista. A APA vai obrigar as entidades gestoras das embalagens a actualizar a taxa que pagam às autarquias, com as verbas necessárias para atingirem as metas. Este valor não era actualizado há mais de cinco anos. A concretizar-se, garante Rui Berkemeier, da associação Zero, “é uma pequena vitória para o ambiente”.