Jorge Bacelar Gouveia: “É preciso saber se vai haver exonerações no âmbito do SIRP e do SIS”
O ex-presidente do Conselho de Fiscalização do SIRP considera que o caso do computador resgatado pelas secretas “foi um episódio infeliz”, mas defende que “é preciso apurar responsabilidades”.
No rescaldo do caso em que um gabinete ministerial levou à actuação do Serviços de Informações de Segurança (SIS) para recuperar o computador de serviço de um adjunto acabado de exonerar, Jorge Bacelar Gouveia, professor universitário, constitucionalista e antigo presidente do Conselho de Fiscalização do SIRP [Sistema de Informações da República Portuguesa] entre 2004 e 2008 — o organismo a quem cabe fiscalizar o SIS —, analisa os acontecimentos à luz da lei e do Estado de direito. E aproveita para explicar como operam as secretas, que tipo de polícias são e para que servem.
“Um serviço de informações produz relatórios que antevêem cenários disruptivos para a segurança nacional. Isso não quer dizer que não tenham uma dimensão operacional. Têm de fazer vigilâncias, ter fontes humanas, procurar informação, trocar informações, cooperar com outros serviços, até ter identidades alternativas”, explica. “Mas o serviço em si não é um serviço de rua, que ande a recolher computadores. É um serviço de ‘inteligência’, de predição, de antecipação de cenários disruptivos para ajudar o decisor político a tomar as medidas para que esses cenários não sejam verdades no futuro.”
O ex-deputado do PSD é o convidado desta semana do programa de entrevistas Hora da Verdade, que junta o PÚBLICO e a Renascença. A conversa na íntegra passa na rádio nesta quinta-feira, a partir das 23h.
Tem sido muito crítico em relação à intervenção do SIS neste caso. Mantém que essa intervenção foi ilegal?
Eu vi o comunicado do Conselho de Fiscalização sobre aquilo que sucedeu e julgo que esse comunicado é um conjunto de contradições, além de erros jurídicos. De facto, o SIS, ao ter contactado o adjunto que levou o computador, praticou uma medida de polícia — é uma das medidas de polícia que estão na Lei de Segurança Interna —, além de ter feito apreensão de um computador supostamente roubado. Foi um episódio infeliz. É preciso apurar responsabilidades: quem deu a ordem? Quem é que tomou a decisão de ir buscar o computador? Quem a executou? O Conselho de Fiscalização, aqui, tem maior responsabilidade, porque não está a fiscalizar. E ele é o garante em relação aos cidadãos, da legalidade democrática e dos nossos direitos, porque os serviços de informações não podem actuar restringindo ou limitando direitos, liberdades e garantias. É isso que está no seu estatuto.
Já disse que se tratou de uma ordem ilegal validada duas vezes. O que significa exactamente?
Significa que, por aquilo que se sabe, a secretária-geral recebeu o alerta ou ordem — não sabemos —, mas recebeu a informação da necessidade de ir buscar o computador, assumiu isso como responsabilidade do próprio SIRP e assumiu-o como fazendo parte das suas atribuições e competências.
E a seguir deu supostamente a ordem ao seu subalterno, que é o director do SIS, que também não disse que não — podia ter dito que não, porque ninguém é obrigado a cumprir uma ordem fora do seu âmbito funcional. A Constituição diz que ninguém é obrigado a cumprir uma ordem que se consubstancia na prática de um crime. E também executou a ordem e mandou um funcionário ir buscar o computador. Portanto, a responsabilidade é dos dois e deve ser repartida entre os dois, além da própria responsabilidade do Conselho de Fiscalização, que, neste caso, pelos vistos, não fiscalizou.
Esta quinta-feira, o director do SIS e a secretária-geral do SIRP são ouvidos no Parlamento. Que explicações deviam dar aos deputados?
Acho que têm de contar a verdade toda. Quem foram os funcionários, quem foram as pessoas que os contactaram, porque é que entenderam na sua interpretação que o SIRP e o SIS podiam ter agido? Eu acho que não podiam, mas pode ser que esteja a escapar-me alguma coisa como jurista e como constitucionalista, mas sinceramente não vejo qual seja o fundamento da intervenção dos órgãos.
Há uma coisa que se tem dito que é bastante difusa e até fantasiosa, que é o facto de os serviços terem agido em estado de necessidade. Necessidade de quê? Estava para acontecer a divulgação de algum segredo de Estado? Não estou a perceber bem esse clima de emergência. Aliás, se existia, isso podia ser feito pela Polícia Judiciária. Porque é que se escolheu o SIS? A meu ver, escolheu-se a entidade errada.
O primeiro-ministro, tendo a tutela das secretas, também tem explicações a dar?
Ele colocou-se fora de todo este processo causal porque disse que, se foram tomadas as decisões, o problema era dos serviços, não era dele.
Mas deu cobertura, entretanto, ao próprio ministro...
Sim, é verdade, mas não se pronunciou sobre a legalidade da actuação dos serviços directamente. Julgo que agora é preciso saber se o primeiro-ministro foi [posteriormente] informado pela secretária-geral do que ela fez e tem de nos dizer o que é que vai fazer. Porque, perante uma ordem ilegal da secretária-geral, perante uma ordem ilegal do director, o primeiro-ministro tem responsabilidades. É ele que os nomeia, mas também é ele que os pode exonerar. É preciso saber se vai haver exonerações no âmbito do SIRP e do SIS.
Quem pode declarar, de facto, que houve uma ilegalidade?
Primeiro, é preciso apurar a verdade. A verdade é que neste momento depende da prova testemunhal ou depende de metadados, de conversas telefónicas que tenham sido gravadas, de quem é que ligou, a quem e a que horas. É preciso saber o que é que se passou. Desde logo, a própria legislação do SIRP permite que haja processos disciplinares quando os funcionários actuam em desvio de funções.
Mas como se chega aí? Quem instaura o processo?
Tem de ser o Ministério Público, que tem o monopólio da acção penal. Se houver dimensão criminal, é o Ministério Público.
Nos quatro anos em que presidiu ao Conselho de Fiscalização, viu algum caso parecido com este?
Não. Nós tivemos algumas queixas de vários cidadãos. Mas não tenho nada a ideia — que é uma ideia que agora tem circulado e que tem sido alimentada por este episódio infeliz — de que os serviços [secretos] estão ao serviço das intrigas governamentais. Essa ideia de que, de vez em quando, isso acontece vai-se repetindo por certos meandros mais fechados, mas eu tenho a percepção de que [este] foi um caso isolado.
Uma das coisas que o Presidente da República disse na declaração ao país foi que as secretas estão ao serviço do Estado e não do Governo...
Essa foi a frase que mais me impressionou no discurso do Presidente da República. Porque, de todas as coisas que ele disse com grande veemência e com uma grande repreensão em relação à parte da palavra do passado, essa foi a mais grave de todas. Eu nunca tinha visto nenhum responsável político e, neste caso o chefe de Estado, a dizer que os serviços de informações estão ao serviço de interesses políticos e não de interesses de segurança nacional.
Essa frase é gravíssima. E se o Presidente da República a disse, alguma razão teve para o fazer. E está dita. É um aviso de que tem de haver consequências do que aconteceu. Isso significa que o Presidente soube o que é que se passou ao pormenor e significa que está à espera que haja consequências sobre o facto grave que aconteceu.
Num país que já teve uma polícia política, quer explicar porque é que a utilização dos serviços de informações por parte do poder político é tão grave?
É muito grave porque nós temos uma memória que ainda persiste. A nossa geração já vai esquecendo essa memória, mas os nossos pais, os nossos avós não esqueceram. A PIDE era uma polícia altamente sofisticada e que tinha várias funções. Ao contrário do que se julga, não era apenas uma polícia política, porque era uma polícia judiciária, uma polícia de fronteiras, era uma polícia de investigação, era uma polícia que tinha várias funções, digamos, conglomerava várias coisas que hoje estão separadas em várias estruturas policiais.
E eu acho que o Estado de direito democrático tem de ter muito cuidado, porque o caso em si pode ser isolado, pode não ter a gravidade que alguns querem atribuir — eu também dou o benefício da dúvida até conhecer toda a verdade —, mas o problema é que estas coisas são feitas de episódios que despertam em nós todos os fantasmas piores que temos. E o fantasma da perseguição política ou do uso de meios de produção de informações para fins pessoais, para intrigas ou para perseguições políticas é um fantasma que realmente apoquenta várias pessoas. Basta um caso e, na dúvida, acho que se deve agir com toda a rapidez e com intensidade para atalhar logo o mal na nascença, para se perceber que aquilo foi um caso isolado e que se resolveu, que se fez alguma coisa.
Começa a ser defendida uma comissão de inquérito a este caso e à actuação do SIS. Concorda?
Antes, vamos ver o que têm a dizer a secretária-geral e o director do SIS. Isso vai ser esclarecido em pouco tempo. Depois, se as dúvidas persistirem e se não houver uma outra teoria sobre a interpretação da lei que seja convincente, então aí deve fazer-se uma comissão de inquérito, embora isso tenha uma dificuldade acrescida: a questão do segredo de Estado. Nunca poderia ser uma comissão de inquérito aberta, mas pode investigar várias coisas: como é a estrutura, quais são os seus funcionários, quais são as cadeias de comando, como é que as coisas funcionam, se funcionam bem nos procedimentos, na aplicação dos procedimentos. Tudo isso.