Quando a tarde abandonava as meninas
Tremia de medo, encostada a um canto ou deitada na cama. Rezava como quem espera acender uma luz.
Quando a tarde abandonava as meninas deixando-as à mercê do escuro – interrompido a velas e espaçadas lâmpadas –, a Sãozinha tremia de medo, encostada a um canto ou deitada na cama. Rezava como quem espera acender uma luz, ave Maria, cheia de graça, mas essa promessa de iluminação não se concretizava, o Senhor é convosco, e o medo ia sendo sempre mais barrento, mais material, mais mineral, mais sólido, mais parecido com um osso do que com um sentimento, bendita sois Vós entre as mulheres. Mas também tremia quando aparecia a Glória, que era bem mais velha, 12 anos, o dobro da idade dela, corpo magro, seco e anguloso, com as pernas de alicate e a cara muito branca, os lábios finos, os olhos encovados, olheiras com leve tom azul e o trejeito intimidante – que fazia contorcendo a boca e semicerrando os olhos –, imediatamente antes de falar, antes de as palavras lhe saírem dos lábios como felinos a farejar a vítima, palavras que ela construía laboriosamente com vontade de magoar.
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