No Mira, o abuso de poder e a venda ilegal de água já levaram Governo a agir
Violação de normas, abuso de poder, venda ilegal de água e a “forma displicente” como promove a conservação das infra-estruturas de rega impuseram a destituição da Associação de Beneficiários do Mira.
Várias denúncias “por alegadas irregularidades” cometidas pela direcção da Associação de Beneficiários do Mira (ABM) forçaram a Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR) à destituição do órgão gestor Aproveitamento Hidroagrícola do Mira (AHM) e a nomear uma comissão administrativa para assegurar a campanha de rega de 2023.
No despacho elaborado pela DGADR, datado de 20 Março de 2023 e assinado pela ministra da Agricultura e Alimentação (MAA), Maria do Céu Antunes, a que o PÚBLICO teve acesso, é feita a referência à prática de actos de “manifesto abuso de poder, (…) ao vedar a aferição da legalidade dos actos praticados e das deliberações tomadas, nomeadamente, impedindo a consulta de processos e documentos administrativos”.
De entre os fundamentos que sustentam a decisão da DGADR, destaca-se uma providência cautelar de “suspensão de eficácia de acto administrativo” requerida pela empresa Campo Sol, Lda., junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, em Agosto de 2022. A empresa queixa-se de ter sido privada do fornecimento de água, decisão que diz “violar as normas” a que a ABM está vinculada, “contrariando” assim o regulamento do AHM.
A Campo Sol, Lda. invoca, entre outros fundamentos que diz justificarem a providência cautelar, a criação de um “mercado paralelo e não regulamentado dos direitos de água”, em que os proprietários dos terrenos inseridos no AHM, que não exercem actividade agrícola, “vendem os seus direitos” da água de rega a “preços abusivos” aos agricultores, prática que será “intermediada por terceiros”, alega a empresa.
O despacho da DGADR refere ainda que, entre a prova documental exposta por aquela empresa, “consta documentação” respeitante a vários contratos de cedência de água a outros prédios, os quais foram aceites pela ABM e nos quais não é exercida qualquer actividade agrícola, sendo que tal prática – a utilização de água fora do local beneficiado – “consubstancia uma contra-ordenação” prevista no regulamento do AHM.
O negócio associado à venda ilegal de água entre agricultores que tinham débito atribuído mas não fizeram o seu uso para outros agricultores que dela necessitavam envolveu verbas que podem ter oscilado entre os 500 e os 2500 euros por hectare. Obviamente que os valores à volta desta água servida de forma clandestina não são oficiais. A prática está sob investigação e foi uma das causas que contribuíram para a destituição da direcção da Associação de Beneficiários do Mira. Não foi possível, no entanto, apurar qual o volume de água transaccionado de forma ilegal.
Perdido o financiamento para executar projecto
As denúncias formuladas pela DGADR à direcção da ABM estendem-se à “forma displicente” como a associação promove a manutenção e a conservação das infra-estruturas de rega. E destaca uma situação concreta: durante o ano de 2022, a DGADR “prorrogou por três vezes” o prazo para que a associação pudesse obter uma dotação orçamental de 30 milhões de euros, através do PDR2020, para “melhorar” a eficiência do sistema de rega do Mira.
Este financiamento destinava-se à construção da estação elevatória de Santa Clara, à impermeabilização dos troços do canal condutor geral, do canal de Milfontes e do canal de Odeceixe, à reabilitação do sifão de Baiona e à construção de três reservatórios de regularização.
Contudo, o acesso ao financiamento obrigava a ABM a possuir um projecto de execução concluído e aprovado pelas entidades competentes, pelo que a DGADR deu indicações expressas para que a candidatura de construção da nova estação elevatória de Santa Clara, considerada no actual contexto de escassez de água, fosse, obrigatoriamente, apresentada até ao dia 2 de Setembro de 2022.
Mas acontece que o respectivo projecto de execução "nunca foi aprovado pela DGADR", refere-se no despacho, que acrescenta: o documento submetido pela ABM para apreciação não era um projecto de execução, mas um projecto de concepção-construção. Assim, até ao momento, a ABM “não conseguiu obter financiamento para nenhuma das intervenções consideradas de importância relevante", conclui o documento.
Situações anómalas na campanha de rega de 2021
As situações anómalas na gestão da ABM estendem-se à elaboração da campanha de rega de 2021, depois de a DGADR ter constatado que os valores reportados pela associação “suscitaram fundadas dúvidas”, entre outros, os relativos às áreas e culturas regadas dentro e fora do perímetro, neste último caso, os chamados agricultores precários (com explorações fora do perímetro de rega).
Os dados apresentados pela ABM para o ano de 2021, ao serem comparados com os de 2020, levam à “constatação” de que as áreas de culturas permanentes precárias “deixaram de existir”, mas, em contrapartida, as áreas de culturas permanentes dentro do perímetro de rega “passaram a ser” o somatório das áreas localizadas “dentro” e “fora” do regadio”.
Ou seja: em 2021, devido às restrições impostas pelos recursos hídricos disponíveis, deixaram de existir utentes precários, mas as áreas dentro do perímetro de rega aumentaram. E, nalguns casos, a soma das áreas de cultivo dentro e fora dos blocos de rega em 2020 “é igual ou muito aproximado dos valores enviados relativos ao ano de 2021”.
A ABM informou que os dados apresentados resultam de "instruções internas do serviço relacionadas com as restrições ao consumo impostas na campanha de 2021, assim apenas foi permitido a inscrição de áreas beneficiadas contabilizando-se para efeitos estatísticos apenas dentro do Aproveitamento Hidroagrícola do Mira.”
A DGADR não se conformou com a resposta e a troca de argumentos entre as duas entidades manteve-se ao longo de quase seis meses. Até que em Dezembro de 2022 a ABM informou que “… procedeu novamente à verificação dos dados relativos às culturas permanentes do AHM, tendo-se concluído que os valores indicados no relatório e contas de 2021, nos quadros das áreas regadas, contêm um lapso…”, que será corrigido para ser incluído no relatório e contas de 2022. A DGADR continua a aguardar que lhe seja enviada a alteração prometida.
Entretanto, para o planeamento da campanha de rega de 2023, “ainda não foram definidos” os critérios de atribuição dos 14,3 hectómetros cúbicos de água que este ano foram destinados à agricultura de regadio, apesar de já estar a decorrer.
O volume de água a debitar para o regadio está sujeito aos critérios de atribuição plasmados no Plano de Contingência para Situações de Seca, adaptado às condições actuais de reduzidas disponibilidades de água, de “forma a reduzir o impacto económico e social na área beneficiada pelo AHM”, explica a direcção-geral.
Neste sentido, a DGADR, entre as várias directivas e instruções que diz já ter transmitido à ABM, salienta que o planeamento de rega “deveria ratear áreas a regar, considerar as inscrições para os beneficiários que regaram na campanha de 2022, excepto caso haja investimentos já comprometidos, e divulgar de forma activa a impossibilidade de regar novas áreas”. Ficam assim impedidas novas culturas em estufa.
E a campanha de 2023?
O planeamento da campanha de 2023 deixará de atribuir a dotação de rega “igual para todos os tipos de usos, uma vez que não são usos igualmente prioritários e com necessidades de água equivalentes”. Foi, igualmente, dada orientação na priorização do tipo de culturas, onde, por exemplo, “as culturas não agrícolas não seriam prioritárias (relva e floricultura)”, decisão que abrange a empresa Camposol Lda.
Da falta de implementação atempada do Plano de Contingência (PC) e da garantia na operacionalidade do Plano de Investimentos (PI), “poderão advir consequências extraordinariamente gravosas para a actividade das empresas agrícolas instaladas no perímetro de rega” que poderão ser “geradoras de responsabilidade civil extracontratual para a entidade gestora e para o Estado português”, assinala o despacho da DGADR.
Este organismo entende que deverão ser tomadas “medidas urgentes para pôr cobro a esta situação”, revelando que já está em curso um Inquérito Administrativo por “existir uma deficiência grave na actuação da direcção da ABM”. O despacho conclui que esta entidade “mostra-se incapaz de implementar e concretizar os PC e PI e não possui uma visão estratégica que permita, pelo menos, assegurar a campanha de rega de 2023”.
Assim, a direcção-geral propôs ao Ministério da Agricultura a “destituição da direcção da ABM e a nomeação, em sua substituição, de uma comissão administrativa que assegure com urgência a campanha de rega de 2023”.
Nos esclarecimentos prestados ao PÚBLICO, o presidente da direcção da ABM, Miguel Figueira, adiantou que o procedimento administrativo, iniciado pela DGADR, com vista à “eventual demissão” do órgão a que preside “foi oportunamente e tempestivamente respondido”, acrescentando que foram refutados “todos os factos que lhe eram apontados”.
Em relação à interposição da providência cautelar requerida pela empresa Campo Sol, Lda., Miguel Figueira disse que a acção da empresa se enquadra “no exercício dos normais direitos vivenciados em democracia, cabendo aos tribunais aferir a sua procedência ou improcedência”, frisando ainda que a direcção da ABM “actuou sempre dentro das suas competências estatutárias e de acordo com os limites que as leis lhe impõem”.
O PÚBLICO questionou a Campo Sol Lda. sobre as decisões tomadas pela ABM e as consequências resultantes para a empresa, mas até ao momento não recebeu qualquer resposta.